Fortalecendo o jornalismo local pelo Brasil: o impacto do Caravana nos territórios
  • 24.04
  • 2025
  • 09:08
  • Thaís Cavalcante

Formação

Fortalecendo o jornalismo local pelo Brasil: o impacto do Caravana nos territórios

Quando precisavam de alguma informação da prefeitura para produzir uma reportagem, as jornalistas do Site Coreto, em Poções, na Bahia, não tinham dúvida: pegavam o celular para acionar a pessoa com a maior chance de retorno. Em muitos casos, essa pessoa era também um vizinho, uma vizinha. Invariavelmente alguém com quem tinham alguma proximidade. Não é surpresa em um município com apenas 48 mil habitantes (IBGE, 2022) que as pessoas se conheçam. 

“Fazer jornalismo em Poções é um desafio diário. Aprendemos a construir um relacionamento com a comunidade que, além de serem nossos leitores, também são parceiros na hora da produção da notícia”, afirma Leila Costa, diretora de jornalismo do Coreto. Exatamente por isso, fazer jornalismo em Poções depende da construção de laços sociais e de um tanto de informalidade. Mas isso começou a mudar.

Em setembro de 2024, após os encontros do Caravana, projeto de formação itinerante da Abraji, a prefeitura de Poções recebeu seu primeiro pedido via Lei de Acesso à Informação (LAI) feito por um veículo de jornalismo. Raquel Rocha e Leila Costa queriam saber quais projetos de lei haviam sido propostos entre 2021 e 2024. 



Treinamento do Site Coreto, em Poções, interior da Bahia. | Foto: Divulgação.

Com o primeiro pedido negado, elas não desistiram. Entraram com um recurso – com o apoio da Fiquem Sabendo, agência especializada no tema e parceira da Abraji. Documentos em mãos, o jornal descobriu que a maioria dos projetos de lei (13%) apresentados à Câmara Municipal nos últimos 4 anos pretendia mudar o nome das ruas da cidade. Na reportagem, Raquel, jornalista e co-fundadora do Coreto, ainda detalha os vereadores que mais fizeram propostas e ensina o leitor a fazer a busca pelos projetos de lei em votação e os aprovados. 

Mais perto da comunidade

Raquel e Leila sabem que fazer jornalismo em uma comunidade pequena é uma tarefa desafiadora e que, para isso, o jornal precisa, além de fiscalizar o poder público, estar sempre muito próximo e aberto a escutar as demandas locais. Para dar conta disso, o Coreto tem criado estratégias que fortalecem esse vínculo, estabelecendo canais diretos de comunicação com a audiência, estando fisicamente presente em eventos e, durante as eleições, com encontros de troca e escuta com moradores. O “Comunidade em Foco" foi inaugurado também após as formações do Caravana e estabeleceu uma agenda de encontros online.  

Michel Silva, fundador do Jornal Fala Roça, publicado na Rocinha, Rio de Janeiro, também entende o jornalismo local como ferramenta para fortalecer as relações entre a organização e a comunidade. Parceiro do projeto Caravana em 2024, o jornal lançou um edital de microbolsas para financiar pautas sugeridas pelos próprios moradores. 

Quatro jovens entre 17 e 30 anos receberam apoio financeiro e mentoria para produzir conteúdos sobre empreendedorismo, maternidade solo e questões de saúde mental, acesso a tratamento e estigmatização de doenças na favela. O jornal mantém ainda um banco de freelancers locais que escrevem periodicamente para o portal online.


Treinamento do Jornal Fala Roça, na favela da Rocinha, Rio de Janeiro. | Foto: Divulgação.

“O Caravana foi criado justamente para fortalecer a conexão entre jornalistas locais e suas comunidades, promovendo um encontro entre o que a Abraji pode oferecer e o que as organizações locais possuem de demanda", afirma Nina Weingrill, coordenadora do projeto. Esse encontro tem como resultado a qualificação do trabalho jornalístico nessas regiões, ao mesmo tempo em que conecta os jornalistas locais a redes nacionais. “A proposta do projeto é dar visibilidade ao trabalho da organização e suporte para questões importantes como segurança física e digital e para pedidos de Lei de Acesso à Informação", complementa. 

Redes em construção

Outra demanda latente das organizações que participaram do projeto Caravana foi a construção de redes locais. Em Chapecó, Santa Catarina, a Kombi Jornalismo (anteriormente Kombi Livros) não somente mudou de nome para reforçar seu foco na cobertura jornalística da região, mas também promoveu um encontro com representantes de cerca de 50 organizações locais – de rádios comunitárias a coletivos quilombolas –, o I Fórum Catarinense de Comunicação.

O evento rendeu a construção de uma rede que segue atuando e compartilhando informações sobre a região, trocando pautas e promovendo encontros formativos virtuais e presenciais."Não imaginava que a gente ia se tornar uma referência nesse processo de mobilização. A nossa articulação não é só estadual, mas com amplitude nacional", conta Ernesto Puhl, representante da Kombi Jornalismo.

Comunidade de aprendizagem

Ao longo dos últimos 20 anos, a Abraji tem atuado como uma organização que dá suporte ao campo jornalístico. Além do Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, evento consagrado no meio, a associação promove regularmente cursos e oportunidades de formação para jornalistas em começo de carreira. 

Mas muitas dessas oportunidades ainda ficam restritas aos grandes centros, quando presenciais, ou para quem possui fácil acesso à internet. Um dos propósitos do projeto Caravana é democratizar o acesso a essas formações. E foi precisamente o que aconteceu em Rio Branco, Santarém e Corumbá de Goiás. A maioria dos participantes presentes nos encontros estava, pela primeira vez, tendo acesso a oficinas de jornalismo.


Indígenas do Povo Shanenawa no treinamento da Associação MATPHA, no Acre, Rio Branco. | Foto: Divulgação.

"A comunicação é uma ferramenta de empoderamento para os jovens. A gente viu o Caravana como uma oportunidade de profissionalizar esses comunicadores. Mostramos que o comunicador vai muito além de tirar uma foto, ele é um agente de mudança que começa a transformar a sua realidade e a do seu povo", afirmou Wauana Manchineri, Indígena do povo Manchineri e coordenadora de projetos no MATPHA, em Rio Branco.

O Coletivo Utopia Negra Amapaense, atuante em Macapá e parceiro do projeto Caravana, mobilizou comunicadores populares, estudantes de jornalismo e ativistas locais para uma oficina formativa que discutiu, na prática, como o jornalismo pode — e deve — assumir múltiplos formatos e linguagens. A prioridade, afinal, é conseguir se comunicar de forma real e efetiva com o território. E, para isso, é preciso alargar as fronteiras do que tradicionalmente se entende como jornalismo.

Durante dois dias, os participantes vivenciaram oficinas práticas, rodas de conversa, apresentações artísticas e momentos de celebração da cultura local. O encontro fortaleceu o jornalismo investigativo no Norte do país e mostrou que informar também é uma forma de criar vínculos, respeitar identidades e compartilhar saberes diversos. Os lambe-lambes em verde e roxo, ilustrando as palafitas, deram cor e identidade ao evento, que também foi pensado para acolher mães, crianças e toda a comunidade.

“Esses momentos de aprendizado e fortalecimento de nossas vozes sempre devem e vão encerrar com boas vibrações e muita dança, pois é assim que exaltamos a nossa ancestralidade e todas as vozes que vieram antes das nossas. Comunicar a história, através da cultura, é celebrar os passos que já foram dados para que pudéssemos estar aqui”, conta Irlan Paixão, coordenadora das redes do Utopia Negra.


Cultural com o Grupo Marabaixo da Juventude, em Macapá, Amapá. | Foto: Divulgação.

Ao longo da oficina, ficou evidente que o jornalismo não precisa caber em uma única forma. O uso de diferentes tecnologias sociais demostrou que a informação e a denúncia podem chegar à comunidade de maneiras diversas — seja pela imagem, pelo som, pela arte ou pela oralidade. “Em uma roda de conversa emergiram as demandas do território e um jeito próprio de fazer jornalismo, que nasce das vozes e das experiências da comunidade – que não apenas fala sobre ela, mas fala com ela, no seu tempo e na sua linguagem", afirma Nina Weingrill.

1ª Formação itinerante da Abraji

O projeto de formação local criado pela Abraji impactou cerca de 300 comunicadores, estudantes de jornalismo e jornalistas locais em 2024. Em sua maioria, foram mulheres (57,9%), pessoas pretas ou pardas (44,2%) e indígenas (13,3%). Os encontros foram realizados em nove estados do país, em parceria com 10 veículos de jornalismo local. 

Durante dois anos, jornalistas e comunicadores que atuam nas favelas, no sertão da ressaca, no interior dos municípios, nos centros urbanos e nas aldeias, fortaleceram suas organizações, atualizaram seus conhecimentos e engajaram suas comunidades a partir da realidade de cada território.


Treinamento da Abaré Escola de Jornalismo, em Manaus, Amazonas. | Foto: Divulgação.

Conheça as organizações selecionadas: Abaré — Escola de Jornalismo (Amazonas), Associação de Comunicação Fala Roça (Rio de Janeiro), Coletivo Utopia Negra Amapaense (Amapá), Associação MATPHA (Acre), Associação Giramundo (Amapá), Coletivo Magnífica Mundi (Goiás), Kombi Jornalismo (Santa Catarina), Site Coreto (Bahia), Telas em Rede (Pará) e TV Restinga Falante (Rio Grande do Sul).

“O projeto chega a 2025 ainda mais necessário e energizado. O aprendizado e os retornos que recebemos mostram que foi acertada a iniciativa de interiorizar os nossos treinamentos. Queremos cada vez mais nos conectar com jornalistas e comunicadores que atuam nas mais diversas comunidades”, comenta Katia Brembatti, presidente da Abraji.

O projeto lançará, durante o 20º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da Abraji, o “Guia Caravana: Jornalismo Investigativo nos Territórios”, livro físico e digital que reúne as metodologias desenvolvidas para compartilhar o conhecimento aprendido, reforçar o compromisso com a democratização da informação e o fortalecimento das redes locais por todo o país. Os representantes das organizações também irão participar da programação na condição de bolsistas.


Apresentação artística do Coletivo Utopia Negra Amapaense, em Macapá, Amapá. | Foto: Divulgação.

Projeto Caravana em 2025

Com o sucesso e impacto da iniciativa financiada pela Fundação Ford, o Caravana terá sua 2ª edição este ano. Desta vez, a temática das formações presenciais e online será dedicada a quatro dos seis biomas brasileiros: Amazônia, Caatinga, Cerrado, Pantanal, Mata Atlântica e Pampa. Uma forma de reforçar o compromisso da Abraji com as pautas mais urgentes para a cobertura do jornalismo local brasileiro, que possui impacto nacional e global.

Assinatura Abraji