Quais os efeitos da nomeação de militares?
  • 22.10
  • 2020
  • 11:38
  • Pedro Teixeira

Acesso à Informação

Quais os efeitos da nomeação de militares?

O projeto Achados e Pedidos encontrou 99 militares que ocupam cargos comissionados em nove órgãos federais responsáveis pela gestão de políticas socioambientais no Brasil. Os dados estão disponíveis no Monitor de Dados Socioambientais, desenvolvido por Abraji, Transparência Brasil e Fiquem Sabendo, com financiamento da Fundação Ford.

Esses militares, em ampla maioria do alto escalão na hierarquia das Forças Armadas, exercem funções de comando na Funai (Fundação Nacional do Índio), no Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), no ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e em outros órgãos federais que atuam de maneira direta ou indireta na preservação do meio ambiente e na proteção dos direitos das comunidades tradicionais.

Denis Rivas, presidente da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (ASCEMA Nacional), afirma que a atual gestão do Ibama no Pará, comandada por um policial militar paulista, legalizou cargas de madeira que haviam sido exportadas de forma irregular para os Estados Unidos.

Ele avalia que a militarização acentuada dos órgãos ambientais pode indicar o afrouxamento das leis no setor: “Atitudes assim demonstram que os militares ocuparam esses postos estratégicos justamente para enfraquecer a aplicação da legislação ambiental e permitir furos mesmo na aplicação da legislação”.

O Brasil registrou o maior desmatamento na Amazônia da década, em 2019, e, em 2020, contabiliza um número inédito de focos de queimada no Pantanal, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Rivas defende que “enquanto o governo não reconhecer a experiência dos órgãos ambientais, a necessidade de os fortalecer e promover novos concursos para as vagas que já estão abertas, vamos assistir ao descontrole em temas importantes da área ambiental”.

O professor Alexander Turra, do Departamento de Oceanografia Biológica do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo, concorda: “Essa militarização dos cargos, funções e procedimentos tem nos levado ao desastre ambiental testemunhado na Amazônia e no Pantanal”.

Turra lembra que os militares têm uma função clara e importante no país e são treinados para exercê-la. Entretanto, “eles não têm treinamento, embora muitos possam ter muito boa vontade, para realizar ações em áreas temáticas como meio ambiente, que requerem conhecimento, habilidades e competências específicas”.

Para Turra, além da falta de formação específica, é preocupante a razão fundamental que motiva a escolha de membros da força armada para órgãos de gestão socioambiental: “ter pessoas que executem as designações dos supervisores hierárquicos sem questionamento”.

Especialista em gestão ambiental, Turra destaca outros efeitos, como “a falta de diálogo com os demais atores sociais, como a sociedade civil organizada, e desconsideração de preceitos técnicos e da ciência, levando à imperícia na tomada de decisão”.

O Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL) serve como exemplo. Instituído no governo Bolsonaro, o CNAL é formado por 19 militares, sendo 15 coronéis, um general, dois majores-brigadeiros e um brigadeiro, além do próprio vice-presidente da República, general Hamilton Mourão (PRTB). Nenhum representante da Funai e do Ibama estavam na composição.

Para Suely Araújo, especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima, que presidiu o Ibama de 2016 a 2018, os militares podem ter currículos excelentes, mas é preciso analisar o caso de forma mais ampla. “Há um problema na opção, porque foram afastados, em vários desses cargos, pessoas com bastante experiência nos próprios órgãos ambientais e na fiscalização ambiental em âmbito federal”.

A ex-presidente do Ibama ressalta que “fazer fiscalização ambiental em um estado como São Paulo ou Paraná, em um órgão de polícia militar, mesmo que seja em um batalhão florestal ou ambiental, é bastante diferente de trabalhar com fiscalização na Amazônia, uma região muito complexa e um ambiente hostil contra os fiscais”.

“Eles têm um treinamento do ponto de vista hierárquico bastante rígido. Não é o mesmo tipo de treinamento que analistas ambientais com uma formação essencialmente técnica têm”, aponta Araújo. De acordo com ela, o governo deveria garantir que as decisões políticas não guiem questões técnicas.

Exonerado da diretoria do Inpe em 2019 depois de reagir a críticas do governo Bolsonaro a dados do órgão, o físico Ricardo Galvão é também incisivo em seu parecer sobre a atual gestão: “O governo despreza a contribuição de técnicos e cientistas de altíssimo nível, especializados em questões ambientais, para escutar apenas os colegas de órgãos militares, ou a eles subordinados. Além disso, está enxergando a questão de monitoramento da Amazônia sob a óptica militar de vigilância, e não de preservação”.

Um dos autores do Quarto Relatório de Avaliação do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) — trabalho agraciado, em 2007, com o Prêmio Nobel da Paz —, o cientista Carlos Nobre faz uma análise mais geopolítica dos dados revelados pela Abraji, Fiquem Sabendo e Transparência Brasil.

“O governo brasileiro passou a seguir o modelo da Venezuela e isso não tem a ver com ideologia e sim com a militarização, com o viés de manutenção do poder. Os militares são treinados para sempre obedecer o chefe. Não me lembro de um único militar no Ministério do Meio Ambiente na época da ditadura. Esse modelo de democracia se tornando autocracia é o que acontece na Turquia e nas Filipinas”.
 

Monitor de Dados Socioambientais

Quer acompanhar as políticas socioambientais de perto? Conheça o Monitor de Dados Socioambientais, iniciativa realizada com apoio da Fiquem Sabendo para o Achados e Pedidos, projeto da Abraji em parceria com a Transparência Brasil, financiando pela Fundação Ford.

Charge: Mikael Schumacher

Assinatura Abraji