"O prefeito não gosta de índio”
  • 01.06
  • 2023
  • 09:00
  • Sérgio Ramalho (Atalaia do Norte), Imagens: Marcos Tristão (Atalaia do Norte), Caê Vatiero (São Paulo) e Angelina Nunes (Rio de Janeiro)

Liberdade de expressão

"O prefeito não gosta de índio”

Bushe Matis tinha por volta de 14 anos quando ouviu do pai o alerta para evitar a Teófilo Brasil, uma rua de pouco mais de 300 metros, que liga a Avenida Augusto Luzeiro ao Mercado do Peixe, à margem do rio Javari. O adolescente da etnia Matis acabara de se mudar com a família da aldeia para Atalaia do Norte, município no extremo oeste do Amazonas erguido a partir dos ciclos de borracha e madeira, onde fica localizada parte da Terra Indígena Vale do Javari. 

No caminho vedado pelo pai vivia Rosário Conte Galate Neto. Um madeireiro que enveredou pela política e acabou eleito prefeito no início dos anos 2000 com o bordão: “Índio bom é índio morto”. “Meu pai dizia para a gente não passar pela rua do prefeito, porque ele não gostava de indígenas. Aquelas palavras nunca se apagaram de minha memória”, relembra Bushe, que por anos desviou seu caminho para passar longe da casa de Galate.

Hoje, aos 36 anos, formado em Administração e pós-graduado em Gestão Pública, Bushe é o coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, a Univaja. Eleito em mar.2023 para representar as 26 etnias que vivem nos 8,5 milhões de hectares da TI, Bushe Matis não teme mais passar na frente da casa do ex-prefeito. Embora a pequena cidade onde cresceu tenha surgido numa nesga de terra em meio à floresta amazônica, os indígenas que vivem na localidade convivem com a intolerância de parte dos nawa, como são chamados os não indígenas. 

Bushe assegura, entretanto, que o preconceito vem diminuindo e os indígenas ocupam cada vez mais espaço em setores antes limitados aos brancos. Ele atribui essa escalada ao movimento iniciado pelas lideranças indígenas a partir da criação da Univaja. “Antes, muitos de nossos ancestrais brigavam entre si. Com a união, nos tornamos mais organizados e mais preparados para cobrar nossos direitos ", ressalta. 

O coordenador da entidade atribui esse avanço ao trabalho desenvolvido por Bruno Pereira de Araújo. Segundo Bushe, o indigenista mostrou aos caciques a importância do trabalho conjunto: “O Bruno plantou essa semente. Ele nos mostrou como nos organizar e planejar políticas voltadas aos povos originários a partir da demarcação e homologação de nosso território”.

O indigenista contribuiu para que mulheres indígenas aprendessem novos conhecimentos associados à tecnologia e proteção do território. Quem conta um pouco dessa história é Silvana Marubo, amiga próxima de Bruno, que se tornou uma das principais lideranças femininas da etnia Marubo: 

Assassinado há um ano, juntamente com o jornalista inglês Dom Phillips, numa tocaia enquanto navegava pelo rio Itacoaí em direção à Atalaia do Norte, Bruno Pereira sempre incentivou os jovens indígenas a estudar. “Ele dizia para a gente se preparar, para a gente estudar e ganhar espaço nas universidades dos nawa. Depois de formados poderíamos transmitir os conhecimentos aos demais jovens nas aldeias. Hoje, graças ao Bruno, temos jovens formados, atuando como multiplicadores”, lembra Bushe.

O próprio coordenador da Univaja é um exemplo. O jovem Matis ensina às novas gerações a importância estratégica de conciliar a cultura ancestral com o conhecimento acumulado na academia pelos não indígenas. Foi dessa maneira que Bushe coordenou as buscas pelos corpos de Bruno e Dom em meio à floresta amazônica. Conforme a Abraji revelou em reportagem publicada em 28.jun.2022, o trabalho dos povos originários possibilitou a descoberta dos corpos e do local onde os assassinos afundaram a embarcação que era usada pelo indigenista e o jornalista no dia do crime.

Bushe ressalta que os integrantes de sua etnia têm longa experiência em ações de buscas na mata e nos rios da região. “Ajudamos em outras ocasiões nas buscas por aviões que caíram na floresta”, lembra o coordenador da Univaja. Ele acredita que apenas o trabalho conjunto entre povos originários e os não indígenas poderá garantir a sobrevivência da floresta, com sustentabilidade e melhores condições de vida para todas as pessoas e espécies que vivem na Amazônia.

Bushe Matis fala com conhecimento de causa. O coordenador da Univaja vivencia desde a infância os altos e baixos da relação dos povos originários com os não indígenas, que chegaram à região atraídos pelo ciclo da borracha, passando para a madeira, o minério, em especial o ouro, e a caça e pesca predatórias. Uma longa história de conflitos, que remete ao período anterior à demarcação do território. 

 A guerra dos sem rio

Meses antes da oficialização da TI Vale do Javari pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2001, os grupos envolvidos na extração de madeira se organizaram e passaram a fomentar o medo entre as famílias ribeirinhas. O temor de perder a fonte de sobrevivência alimentou o preconceito em relação aos povos originários, dando origem ao movimento autodenominado “Os Sem Rio”. 

A violência contra os povos originários teve seu auge no fim do ano 2000, com o ataque à base de vigilância entre os rios Ituí-Itacoaí e a sede da Funai. O episódio noticiado à época pelo jornal amazonense A Crítica é lembrado por ativistas ligados à proteção dos povos indígenas como uma batalha campal: 

“Pescadores e madeireiros de Atalaia do Norte e Benjamin Constant subiram o rio Javari em dezenas de barcos. Eram mais de 300 homens armados com revólveres e espingardas de caça. Alguns carregavam coquetéis molotov, que foram lançados contra a base da Funai e o posto de vigilância. Só não houve um massacre graças à chegada de agentes da  Polícia Federal e de homens do Exército em helicópteros".

A cena foi descrita em entrevista gravada por um ativista ouvido sob a condição de anonimato pelo Programa Tim Lopes, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Um dos principais incentivadores da ação violenta, segundo o ativista, foi o então vereador Rosário Galate. No ano seguinte, o político e madeireiro seria eleito prefeito de Atalaia do Norte.

A dinastia Galate

Era o início de uma dinastia, que duas décadas depois segue influente na política regional. A partir da primeira vitória, o patriarca do clã aumentou seu capital eleitoral e garantiu a reeleição em 2004. Em oito anos, o prefeito madeireiro fez fortuna e acumulou uma pilha de processos. Entre eles, por suspeita de envolvimento em crimes ambientais, improbidade administrativa e malversação de dinheiro público.

Numa dessas ações, Rosário Galate chegou a ser condenado à prisão em primeira instância. O político denunciado por desviar dinheiro da Educação deu o nome da mãe, Raimunda Galate, a uma das escolas da rede municipal de ensino. À época, crianças indígenas raramente conseguiam vaga na instituição de ensino, segundo relatos ouvidos pela Abraji.


Escola da rede municipal com nome da mãe do ex-prefeito | Crédito: Marcos Tristão

Em 2008, o ex-prefeito de Atalaia do Norte sofreu seu primeiro processo por improbidade administrativa; hoje são ao menos seis ações. Galate foi acusado porque “deixou de observar dever intrínseco ao cargo que ocupava ao não encaminhar, no prazo devido, a prestação de contas referente aos recursos recebidos do Fundo Nacional de Assistência Social do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome”, conforme registram os autos. O dano causado aos cofres do município teve o valor estipulado em R$ 100.139,23.

Já em 2010, o madeireiro foi intimado a responder pela não prestação de contas de um convênio firmado entre o município de Atalaia do Norte e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que tinha o objetivo de repassar  recursos federais do Programa Nacional de Transporte Escolar para a aquisição de embarcação para o transporte de estudantes ribeirinhos. Segundo o Ministério Público Federal, os repasses referentes a esse programa foram suspensos pelo FNDE, “acarretando nefastos danos à educação dos jovens, crianças e adultos ribeirinhos anteriormente beneficiados”.

Galate acumula uma série de processos envolvendo o FNDE. Em um deles, foi acusado por improbidade administrativa ao não declarar o valor de R$ 35.369,20, repassado pelo Ministério Público, com destino ao Programa Nacional de Alimentação Escolar. O processo, que teve início em 2013, segue em andamento. 

O político foi denunciado em 2011 por irregularidades na execução de outro acordo feito quando ainda era prefeito de Atalaia — dessa vez, com o Ministério do Turismo. O convênio, no valor de R$ 110.000, tinha como finalidade incentivar o turismo por meio do projeto Festival Cultural de Atalaia do Norte (FECAN). As peças do processo obtidas pela Abraji apontam que Galate não encaminhou a documentação que comprovaria o uso da verba, levantando suspeitas de malversação e/ou desvio do dinheiro público. Galate foi condenado a ressarcir R$ 16.000, além de uma multa civil estipulada no mesmo valor.

Para obter as informações listadas acima, a Abraji contou com a colaboração do Jusbrasil, serviço de tecnologia que simplifica a coleta, organização e disponibilização de informações jurídicas oficiais, abertas e públicas no Brasil.

Controle político mesmo distante

O patriarca dos Galate não vive mais na casa da rua Teófilo Brasil que tanto assombrava o imaginário de Bushe Matis e outras crianças indígenas. O imóvel de madeira tem sinais de abandono, muito diferente dos luxuosos casarões existentes no Condomínio Laranjeiras, em Manaus.

É lá, numa área cercada e de acesso limitado por guaritas de segurança, a 1.136 quilômetros de Atalaia do Norte, que vive Rosário Galate. A distância, entretanto, não o impediu de manter influência sobre a região. Seu filho e herdeiro político, Giuliano Pinto Galate, foi eleito em 2020 vice-prefeito na chapa encabeçada por Dênis Linder Rojas de Paiva (UB). Ambos filhos de madeireiros que entraram para a política e fizeram dinheiro com o ciclo da madeira.

Apesar da estreita relação entre os patriarcas dos clãs Galate e Rojas de Paiva, Giuliano e Dênis não parecem manter a mesma proximidade. O vice-prefeito passa a maior parte do tempo em Manaus, onde administra os negócios da família no ramo de transporte fluvial de cargas e turismo.

A extração de madeira ficou no passado, quando a Polícia Federal e o Exército “fecharam o rio”, como disse o prefeito em entrevista à Abraji. Dênis Paiva se referia ao cerco feito por autoridades federais ao enorme fluxo de toras transportadas pelos rios Itacoaí e Javari, em 1996. 

Filho de um vereador e madeireiro radicado em Atalaia do Norte e de uma peruana que vivia entre Tabatinga (Brasil) e Santa Rosa (Peru), Dênis Paiva tem um forte sotaque castelhano. Ele explica que cresceu com a mãe e só na adolescência foi viver na casa do pai. Fruto da miscigenação, Paiva afirma sofrer desde a juventude com o preconceito entre os não indígenas. 

Paradoxalmente, sua condição o tornou próximo dos indígenas, que lhe garantiram os votos necessários à eleição, como admite Bushe Matis. O coordenador da Univaja acredita que mais de 60% dos votos dos indígenas que vivem em Atalaia do Norte e nas aldeias da TI foram para Paiva.   

Curiosamente, o prefeito ganhou notoriedade durante as buscas pelos corpos de Bruno Pereira e Dom Phillips, em junho de 2022. Dênis Paiva foi flagrado por jornalistas ao visitar as casas de familiares de Amarildo da Costa Oliveira nas comunidades ribeirinhas de São Gabriel e São Rafael. Pelado, como é conhecido, confessou participação nos dois assassinatos.

O prefeito nega ter ido defender os suspeitos ao visitar as vilas ribeirinhas. Segundo ele, o crime surpreendeu a todos pela brutalidade. “Fui tentar entender o que estava acontecendo para evitar um confronto entre indígenas e ribeirinhos. De uma hora para a outra todos em Atalaia do Norte passaram a ser tratados como assassinos, traficantes e bandidos. Essa não é a nossa realidade”, disse.

E a realidade mostra um detalhe importante que foi confirmado pelo próprio Dênis Paiva: parentes de Amarildo Pelado tinham cargos na estrutura da administração municipal, assim como muitos indígenas. A situação foi revelada por uma reportagem do Programa Tim Lopes. O prefeito admite que o Executivo é o grande empregador da região:

“Quando assumi a prefeitura, o número de funcionários era de pouco mais de 1,3 mil pessoas. Muitas delas, no entanto, não eram da cidade. Tinha gente nomeada aqui que vivia em Tabatinga e até em Manaus”, disse Paiva, emendando: “Agora temos mais de 1,7 mil funcionários, mas todos de Atalaia do Norte. Esse dinheiro faz a economia da cidade andar”, defendeu.

O prefeito não entrou em detalhes sobre sua relação com os Galate, mas defendeu o patriarca do clã, dizendo que Rosário criou em seu segundo governo a Secretaria do Indígena. “Não sei se é verdade essa história de índio bom é índio morto. Sei que o Galate criou uma secretaria para atender à demanda dos povos indígenas.”

Ativistas e lideranças indígenas confirmam em parte a versão de Dênis Paiva. O ex-prefeito Rosário Galate criou uma secretaria para os indígenas, mas com o objetivo de conquistar votos entre os povos originários. “Com o crescimento da população indígena na cidade, Galate se viu obrigado a fazer pequenas concessões para não perder o poder”, disse Almério Alves, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

A aliança entre os Galate e Dênis Paiva também é apontada por ativistas e indígenas ouvidos pela equipe da Abraji como uma estratégia de sobrevivência política. Antes de ter sido eleito prefeito, Dênis Linder Paiva concorreu em seis eleições, desde o ano 2000. Nas três primeiras, ele disputou uma cadeira na Câmara de Vereadores pelo Partido Comunista do Brasil e pelo PSOL.

Na eleição de 2008, Paiva garantiu uma cadeira de vereador pelo PSOL, com 182 votos. Na ocasião, o então empresário declarou ao TSE bens no valor de R$ 54,8 mil. Nas duas votações anteriores, o candidato não declarou bem algum. Em 2012, o vereador disputou pelo PSOL o cargo de prefeito, mas só conseguiu 283 votos. O candidato declarou patrimônio de R$ 37 mil, o que representa uma redução de R$ 17,8 mil.

Na eleição seguinte, em 2016, Paiva voltou a disputar a cadeira de prefeito. Dessa vez, entretanto, pelo PSDB, numa coligação com outros três partidos. Ao embarcar num partido de centro, Dênis Paiva teve um salto no número de votos conquistados: 1.324, mas não foi eleito. O comerciante também apresentou aumento patrimonial, com bens estimados em R$ 265 mil.

No tabuleiro político de Atalaia do Norte, Dênis Paiva ascendeu ao cargo máximo do executivo municipal em 2020, quando pulou para o PSC e se associou ao clã Galate. Tendo Giuliano como vice-prefeito, Paiva conquistou 2.600 votos. Seu patrimônio informado despencou para R$ 15 mil.

Na relação de bens informada à Justiça Eleitoral na campanha de 2020, Dênis Paiva não listou um automóvel Saveiro ano 2014, duas casas, um terreno e um prédio comercial, citados na relação de bens encaminhada ao TSE na candidatura anterior. No imóvel comercial funciona a loja lotérica alvo de uma operação da PF que desbaratou uma rede de comerciantes de Atalaia do Norte supostamente envolvidos num esquema para reter cartões de benefícios de indígenas.

O esquema ilegal foi investigado e denunciado ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal por Bruno Pereira de Araújo, como a Abraji revelou em reportagem publicada em 29.jun.2022. O indigenista tinha o hábito de realizar investigações paralelas à sua atuação na Funai e, antes de ser executado, estava apurando suspeitas da ligação entre invasores da TI Vale do Javari dentro na prefeitura de Atalaia do Norte.

Em entrevista, Dênis Paiva admitiu que a lotérica foi um dos alvos da operação da PF, mas negou envolvimento em qualquer esquema ilegal. O prefeito acrescentou que a loja pertence a sua mulher, Cleidiana Rodrigues Brotas Paiva, a primeira-dama e secretária de Ação Social do município. Paiva disse ainda que só ficou sabendo da participação de Bruno na investigação por meio da imprensa, após a sua morte. 

*A Abraji integrou uma investigação internacional colaborativa chamada Bruno and Dom Project, coordenada pelo Forbidden Stories que contou com mais de 50 jornalistas de dez países. 
 

Assinatura Abraji