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Manuel Alceu: "País reclama nova Lei de Imprensa"

Publicado em 24 de setembro de 2011 no Blog do Frederico Vasconcelos

O advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira, especialista em questões que envolvem o Judiciário e a imprensa, entende que "era necessário revisar a Lei de Imprensa, passando-a a limpo para conformá-la aos ventos liberalizantes da Constituição de 1988". "Jamais, todavia, draconianamente sepultá-la como algo demoníaco e aterrorizante, o que ela absolutamente nunca foi."

A entrevista a seguir --que trata da atividade atual da imprensa sem uma Lei de Imprensa-- foi concedida há dois meses. Este editor pede desculpas pela demora em publicá-la (o que aconteceu apenas por desorganização deste repórter). Mas as manifestações de Manuel Alceu não costumam ter vida curta.

A propósito, o Blog recomenda a leitura de entrevista que o advogado concedeu em novembro de 2005 à equipe do site "Consultor Jurídico", sob o título "Judiciário e imprensa mal se falam e mal se entendem". Muito do que foi dito naquela ocasião permanece atual (*).

Em maio deste ano, em reportagem de Rodrigo Haidar, também no "Conjur", Manuel Alceu se disse saudoso de uma lei ordinária que detalhe aquilo que a Constituição diz a respeito da liberdade de imprensa. Para o advogado, segundo registrou o repórter, a regulamentação é necessária porque os juízes não ousam extrair da Constituição o que ela determina. "Caso ousassem, o jornal "O Estado de S.Paulo" não estaria há dois anos sujeito a uma censura judicialmente imposta", afirmou. A Justiça proibiu o jornal de publicar reportagens sobre negócios de Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP).

Eis a íntegra da entrevista concedida, por e-mail, ao Blog:

Blog - Quando o STF decidiu, em 2009, que a Lei de Imprensa não foi recepcionada pela Constituição, foram feitas previsões de que haveria um "vácuo jurídico", uma "insegurança jurídica", "desequilíbrio de armas" e certa "desordem". Como o sr. avalia o comportamento da mídia nesses dois anos sem  Lei de Imprensa?


Manuel Alceu Affonso Ferreira - Eu mesmo, quando do julgamento da ADPF [Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental] 130/2008, que resultou em ser declarada a ab-rogação da Lei de Imprensa de 1967, a propósito disso fiz publicar um artigo, em "O Estado de S. Paulo", ao qual intitulei de "Apagão Jurídico", título que a meu ver bem retratava os riscos que a imprensa e o jornalismo brasileiros corriam com a pura e simples abolição da lei especial sem que àquela altura, tal como hoje, nenhum ordenamento a pudesse substituir.
 
Acreditava eu, nas impressões que petulantemente transmiti ao próprio ministro-relator da ADPF, que a legislação codificada ordinária, vale dizer os códigos vigentes (o Civil, o Penal e os Processuais), seria impotente para enfrentar as múltiplas especificidades da atividade jornalística. Mais, também externei que a Constituição Brasileira, não obstante as diversas disposições nela contidas relativamente à imprensa, tampouco fornece suficientes respostas a todas as numerosas dificuldades vivenciadas pelos veículos e pelas redações, entre si e no relacionamento com o leitorado e os ouvintes e/ou telespectadores. As partes e os juízes, quando impetram ou julgam casos dessa espécie, precisam de regras muito mais diretas do que aquelas que, necessariamente de maneira mais distante e abstrata, a Constituição agasalha. Acrescentei, nas mencionadas impressões, que na realidade diuturna,  a interpretação constitucional não é corriqueira (infelizmente!), razão pela qual propicia um maior número de visões distorcidas ou, na linguagem coloquial, de um liberado "chutômetro"...
 
Se é verdadeiro que a antiga lei de imprensa, promulgada em fevereiro de 1967, o foi durante o autoritarismo militar, igualmente é certo que: (1º) as leis não são boas ou más conforme a certidão de nascimento. No Brasil, outras leis do mesma fase discricionária provaram as suas virtudes e até agora vigoram no que lhes é essencial (ex. Código Eleitoral); (2º) portanto, para que se preservasse a lei agora ab-rogada bastaria, sem prejuízo de sua manutenção, extirpá-la daquilo que continha de ruim (exs., a proibição da prova da verdade nas ofensas ao Presidente da República e outras altas autoridades, inclusive estrangeiras; a preocupação, por certo ditada pelo dogma da "segurança nacional", com os "processos de subversão da ordem política e social"; a responsabilidade criminal sucessiva que chegava à teratologia de permitir a condenação dos "distribuidores ou vendedores da publicação ilícita", portanto, dos jornaleiros; a possibilidade da apreensão de jornais pelo Ministro da Justiça. Ou seja, bastaria uma legislação alteradora editada pelo Parlamento que modificasse esses e outros dispositivos indesejáveis; (3º) tudo, aliás, sem desdenhar que a própria Jurisprudência, ao aplicar a Lei 5.250, ao longo dos 43 anos de sua vigência, já se encarregara de consertar-lhe muitos dos exageros e defeitos, declarando-lhes a inconstitucionalidade.
 
Em suma, o necessário era revisar a Lei de Imprensa, passando-a a limpo para conformá-la aos ventos liberalizantes da Constituição de 1988. Jamais, todavia, draconianamente sepultá-la como algo demoníaco e aterrorizante, o que ela absolutamente nunca foi. Durante toda a sua vigência, coincidentemente iniciada com a minha carreira na advocacia, a lei de 1967 foi-me de extrema utilidade ao defender veículos de imprensa, editores e repórteres. Lembro, para ilustrar, os camandos do seu artigo 27, que excluiam dos abusos puníveis várias hipóteses de opinião e informação, algumas delas, para mim as mais saudosas, que imunizavam "a divulgação, a discussão e a crítica de atos e decisões do Poder Executivo e seus agentes",  "a crítica inspirada pelo interesse público" e "a exposição de doutrina ou idéia".
 
Ainda que contrariando o pensamento de muitos dos meus clientes seduzidos pela ilusória convicção de "lei nenhuma", não permaneci solitário nessa oposição à derrubada da Lei 5.250. Tive a indispensável e excelente companhia, verbalizada em estudos então publicados, de juristas da projeção de Miguel Reale Jr. e René Ariel Dotti. Vencidos ficamos, mas até o momento  não convencidos...
 
Seja como for, embora tecnicamente contrariado não deixei de reconhecer, na decisão do STF, uma inspiração libertária de elevados propósitos. Ao assim decidir, o Supremo entendeu (equivocadamente, insisto) que a melhor tutela da liberdade de imprensa residiria no próprio texto constitucional, dispensando acréscimos que o legislador congressual estaria proibido de votar. Contudo, essa minha alegria democrática duraria pouco, muito pouco mesmo... É que não muito tempo após, baseado no mesmíssimo acórdão da ADPF 130, apresentei "reclamação" ao Supremo postulando que pusesse fim à censura judicial imposta ao "Estadão" a pedido do empresário maranhense Fernando Sarney. Para minha tristeza e imensa decepção, a Corte a isso se recusou, invocando óbices processuais e aditando que a ementa do seu anterior acórdão (o da ADPF 130) não refletia, com exatidão, aquilo que o Supremo naquela oportunidade havia decidido. Ficaram derrotados, no julgamento da citada representação, os ministros Ayres Britto, Celso de Mello e Cármen Lúcia, a cujos impressionantes votos todas as homenagens são devidas.

Blog - Como o Judiciário tem agido no caso de abusos no exercício da liberdade de informação?
 
Manuel Alceu Affonso Ferreira - De modo geral, e ressalvadas não-honrosas poucas exceções, nos processos de imprensa o Judiciário não tem desapontado. Na maioria dos casos que lhe são apresentados, a Magistratura vem empreendendo, com equilíbrio, proporcional e razoavelmente, a ponderação entre a liberdade  jornalística de manifestação  e os valores, dotados de "inviolabilidade" pela Constituição, ligados aos direitos da personalidade (privacidade, honra e imagem). O fator do "interesse público" subjacente à informação e/ou à opinião é frequentemente aplicado, a favor da imprensa, nesse delicado balanceamento. Aliás, tal como o quis o notável advogado Luiz Francisco da Silva Carvalho ao sugerir, nesse exato sentido, o preceito que uma comissão especial da OAB, presidida pelo sempre saudoso Evandro Lins e Silva e  à qual tive a honra de pertencer, incorporou em 1971 a um anteprojeto revisor da legislação de imprensa.
 
Blog - O sr. acha necessário elaborar uma nova lei para regulamentar os procedimentos em relação ao direito de resposta?

Manuel Alceu Affonso Ferreira - Não só no tocante ao direito de resposta é que uma nova lei se faz urgente. Por certo  esse instituto, o da resposta, é a ponto cujo disciplinamento é mais urgente, porque quanto a ela nos achamos unicamente oreintados pela respectiva previsão constitucional, todavia sem outros subsídios imprescindíveis à sua aplicação. Por exemplo, já que apenas a Constituição deve resolver o assunto, e mostra-se insuficiente o recurso analógico às leis eleitorais, visto que a Carta não prevê prazo para o seu exercício, sobra a pergunta que o Direito Positivo Brasileiro não consegue atender: a resposta poderá ser formulada a qualquer tempo, sem que onerada por nenhum prazo decadencial? Noutras palavras, até quando se poderá pretender a publicação da resposta? Três anos após a publicação da reportagem respondenda, como ainda recentemente verifiquei em caso que cuido?
 
Insisto: o Brasil reclama sim uma nova e ampla lei de imprensa (não somente regradora do direito de resposta) que assegure, de forma detalhada e concreta, os direitos de todos os envolvidos, informadores e informados. É arriscado, para todos eles, ficarem somente jungidos aos comandos genéricos da Constituição. Essa é uma tarefa que desafia a todos nós, militantes do setor. Por sinal, ao votá-la, o Congresso encontrará pela frente um outro e difícil desafio: a superação dos enunciados postos pelo Supremo no acórdão da ADPF 130. Até porque, caso se restrinja à literalidade do que foi ali decidido, o Parlamento imaginará que o STF interditou qualquer lei de imprensa, seja ela qual for...
 
Falando nisso, no assunto da liberdade de imprensa o Parlamento também deu alguns péssimos passos. Por exemplo, vulnerando-a quando na lei eleitoral proibiu às emissoras de radiodifusão que, durante as campanhas políticas, externassem opinião sobre candidatos e partidos, agindo assim em escancarada afronta à Constituição, que garante a liberdade opinativa a "qualquer" meio ou veículo de imprensa (art. 220). Ou, mais recentemente, quando a CCJ da Câmara Federal aprovou projeto de lei que pune, criminalmente, o jornalista que vier a divulgar "segredo de justiça", aí esquecido de que a responsabilidade pela sua guarda é do operador forense (juiz, promotor, advogado, escrivão ou autoridade policial), nunca do jornal que se limita a receber a informação e licitamente a divulga.

Assinatura Abraji