Ctrl+X passa a monitorar processos com características de assédio judicial
  • 12.11
  • 2021
  • 13:30
  • Leticia Kleim e Lucas de Oliveira

Liberdade de expressão

Ctrl+X passa a monitorar processos com características de assédio judicial

Atualizado em 7.dez.2021.

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) apresenta uma nova fase do projeto Ctrl+X, com o objetivo de registrar e monitorar a prática de perseguição judicial contra jornalistas. O site já está disponível com as modificações.

O projeto amplia a sua base de dados para incluir novos tipos de processos judiciais que têm sido utilizados contra a liberdade de expressão e de imprensa, mas que não necessariamente pedem a retirada de algum conteúdo, como era a especialidade até então. 

O uso do Judiciário para atacar, perseguir e intimidar profissionais de imprensa chama cada vez mais atenção no Brasil. Por meio de reportagens, a Abraji mostrou como essa prática é adotada, seja por empresários, como Luciano Hang, seja por políticos. Embora o assédio judicial não seja um problema exclusivo do Brasil, ganha contornos específicos a partir da legislação brasileira, sendo mais observado com algumas características. 

Carlos Gaio, advogado do Media Defence, ressalta que o Brasil não é um caso isolado. “A utilização do Judiciário para perseguir jornalistas e defensores de direitos humanos é um fenômeno mundial, vinculado sobretudo à perseguição de denunciadores de causas de interesse público”, destaca.  

Gaio explica que internacionalmente se utiliza a sigla SPLAPPs (Strategic lawsuit against public participation) ou ação judicial estratégica contra a participação pública, em tradução livre para o português. O termo se refere aos processos judiciais movidos de forma estratégica para coibir a disseminação de informações de interesse público e a participação da população na defesa de pautas relevantes. 

Para Taís Gasparian, advogada especialista em liberdade de expressão, “o chamado assédio judicial ocorre quando uma pessoa ou uma causa se torna alvo de um grande volume de agressões seguidas, sistemáticas e num curto período de tempo”. Ela diz que o assédio “resulta de comportamentos agressivos e reiterados de um ou diversos usuários, pertencentes a um grupo/vinculados entre si, contra uma única pessoa ou causa”.  

Quatro novas variáveis foram desenvolvidas para ajudar a mapear essa problemática: solicitação de indenizações, processos diretamente contra pessoas, processos com origem nos Juizados Especiais Cíveis e ações criminais. 

Com a inclusão de processos que não tratam exclusivamente de retirada de conteúdo, um novo filtro foi adicionado à plataforma. Nesta nova fase, os usuários poderão visualizar tanto os casos em que há pedido de retirada quanto os que não há esse tipo de solicitação, além da possibilidade de realizar uma visualização conjunta.

Novos filtros 

O parâmetro “solicitou indenização contra conteúdos” diz respeito a ações nas quais a parte autora pede reparação, em dinheiro, por danos morais. Apesar de o valor em si ser decidido ao final do processo pelo juiz, não são incomuns requerimentos de condenações com valores altíssimos, que podem inviabilizar a atividade de um meio de comunicação pequeno ou independente e trazer sérios prejuízos a jornalistas freelancers. 

Vale ressaltar que os textos jornalísticos, cujo intuito é somente o de informar o público, sem evidente intenção de difamar, não provocam, segundo a jurisprudência, danos morais que devam ser indenizados. Contudo, o entendimento do que configura um excesso varia de acordo com o caso e o magistrado. 

O filtro “Processo diretamente contra pessoas” é um critério adotado para mapear ações nas quais o réu é o próprio autor da publicação questionada e não o veículo em que foi divulgada a matéria. Aqui podem ser colocados processos cíveis, eleitorais e criminais.

Ao processar diretamente uma pessoa física, o autor da ação pode tornar o caso ainda mais delicado para os jornalistas, visto que um indivíduo possui menor capacidade jurídica e econômica para se defender judicialmente em comparação com os grandes veículos midiáticos. Além de acabar afetando a imagem e a carreira dos réus, esses processos acabam muitas vezes levando à autocensura.

A nova coluna “processos com origem nos Juizados Especiais Cíveis” reúne ações movidas nos chamados JECs, onde são dispensadas a contratação de advogados em causas no valor de até 20 salários mínimos e as custas processuais, e é incentivada a conciliação entre as partes. Conhecido como “juizado de pequenas causas”, os JECs representam um avanço na viabilização do acesso à justiça em razão da simplicidade e celeridade relacionadas ao andamento dos processos.

No entanto, o acesso facilitado à justiça pode ser utilizado como instrumento de perseguição a jornalistas e formadores de opinião. Isso porque a ausência de custos e a velocidade dos procedimentos permite o ajuizamento simultâneo de várias ações, de modo a dificultar a possibilidade de defesa. Um agravante nesse mecanismo é o fato de o processo ser considerado procedente caso o réu não compareça à audiência de conciliação.  

Um caso emblemático de assédio judicial praticado por meio dos Juizados Especiais Cíveis é o do jornalista J. P. Cuenca, processado mais de 140 vezes após declarações envolvendo a Igreja Universal. As ações foram apresentadas em várias cidades de diferentes estados, exigindo que o réu comparecesse a cada uma das comarcas para sua defesa. Diferentemente do rito padrão, nos JECs os processos são apresentados no domicílio do autor e não do réu.

Por último, a categoria “ações criminais” diz respeito aos processos movidos em resposta a conteúdos que supostamente configuram crimes contra a honra. Calúnia, injúria e difamação são crimes previstos na legislação brasileira como puníveis com detenção, apesar de os parâmetros internacionais de direitos humanos indicarem o contrário. 

A queixa-crime, um tipo de ação criminal iniciada pelo ofendido, tem sido utilizada de maneira recorrente contra jornalistas. No banco de dados há ainda casos de interpelação, uma espécie de ação preparatória para questionar o autor da publicação sobre o intuito de difamação contra aquele que se julga ofendido. Da mesma forma, pode se tornar um instrumento de intimidação e constrangimento do trabalho jornalístico. 

Um dos processos já inseridos na base de dados é a queixa-crime movida pela deputada federal Beatriz Kicis (PSL-DF) em face de um jornalista e colunista da revista Veja. O motivo do processo foi a matéria intitulada “Ordens do STF desnudam primeiro grande escândalo do governo Bolsonaro – Grupo criminoso investigado por propagar fake news e articular ataques antidemocráticos a instituições da República é alvo de dois inquéritos”, veiculada  na coluna Radar da revista.

Kicis argumenta que o texto relaciona a sua imagem ao grupo que seria responsável pela disseminação de notícias falsas e atos antidemocráticos. Segundo a deputada, o grupo seria apenas de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Para ela, a matéria ofende a sua honra por supostamente estarem sendo cometidos os crimes de difamação e injúria. Além dos pedidos de retirada do conteúdo, da publicação de retratação e da indenização por danos morais que ela apresentou na esfera cível, a parlamentar recorreu a uma acusação de ordem criminal. 

O juiz de primeiro grau rejeitou a queixa-crime; e o julgamento foi mantido pela Turma Recursal, que entendeu que a matéria não teve a intenção de difamar, e sim de narrar os fatos. 

Outra queixa-crime que está registrada no banco de dados foi ajuizada pela empresa Jornal da Cidade Online em face da jornalista Tai Nalon, da agência de checagem Aos Fatos. O processo tem como objetivo censurar a reportagem do site "Rede de desinformação do 'Jornal da Cidade Online' que irriga site da viúva de Ustra''. A empresa  alegou ser vítima dos crimes de difamação e de concorrência desleal. 

Mesmo com parecer do Ministério Público e decisão em primeira instância que rejeitaram a queixa-crime, a decisão foi revertida, em recurso, e o processo voltou a correr, ainda sem resultado final.

A diretora-executiva e cofundadora do Aos Fatos, Tai Nalon, comenta a acusação de concorrência desleal: “É como se um veículo jornalístico não pudesse apontar que outro veículo alegadamente jornalístico usa de más práticas para disseminar desinformação. É uma leitura estranha da atividade jornalística como atividade econômica, que pretende estabelecer que reportar fatos também tem como intenção difamar uma marca e, no limite, causar prejuízo econômico.”

A autocensura é uma das piores consequências causadas por essa prática, segundo Nalon. À Abraji, a jornalista contou que parou de fazer reportagens, que hoje são conduzidas pela equipe editorial do Aos Fatos, para não minar a marca do site. “Também sinto cada vez menos vontade de interagir nas redes sociais, porque o assédio judicial vem sempre acompanhado de assédio digital. Tenho colegas que mudaram de área no jornalismo para não passar por situação semelhante”, acrescentou.

A jornalista também reforça que “o Estado deveria resguardar o direito desse profissional [da imprensa] de não viver sob ameaça constante. É como se nós, jornalistas, tivéssemos que abolir a saia curta para não sermos violentadas.” 

A inclusão dessas novas categorias busca facilitar o estudo e monitoramento de ações do tipo, mas não classifica como assédio judicial todos os processos lá incluídos. Tal análise depende da definição adotada e do cruzamento de diversas características, como a recorrência de ações semelhantes contra um mesmo alvo ou a gravidade do processo judicial. 

Estatísticas do projeto

Em constante atualização pela equipe do projeto, o banco de dados reúne atualmente 5.526 processos. Desses, 5.514 são ações de retirada de conteúdo e 12 não possuem esse pedido. Lembrando que os novos filtros podem aparecer nas duas modalidades de processos. 

Os pedidos  de indenização somam 198 processos. Além disso, já são 148 com origem em Juizados Especiais Cíveis, sendo 112 movidos por políticos ou em benefício de algum político.

 

Já os processos diretamente contra pessoas somam 221 casos, 144 movidos por políticos. As ações criminais são os processos com menos registros, apesar da possibilidade de resultar em consequências de maior gravidade. Até a publicação desta reportagem, o banco de dados havia reunido 14 processos desse tipo, sendo o Distrito Federal a UF com o maior número de ações registradas.

Entre os autores mais recorrentes de processos de indenização por dano moral estão Felício Ramuth, reeleito prefeito de São José dos Campos-SP (2021/2024), e Orlando Morando (PSDB-SP), prefeito da cidade de São Bernardo do Campo-SP. A deputada federal Bia Kicis aparece como a principal autora política nas ações criminais contra a publicação de algum conteúdo. Em relação aos processos iniciados nos juizados especiais cíveis, destaca-se entre os autores o governador do estado do Acre, Gladson Cameli, eleito em 2018.  

Tratando-se de pessoas ou instituições que mais apresentaram processos de indenização contra conteúdos e diretamente contra pessoas físicas estão os empresários Luciano Hang e Otávio Oscar Fakhoury, sendo o último o autor mais recorrente entre processos com origem em juizado especial cível. 

Todos os filtros podem ser combinados com as demais categorias já mapeadas pelo Ctrl+X, possibilitando um estudo mais aprofundado dos casos. 

Dúvidas, sugestões ou novos casos para o banco de dados podem ser encaminhados para o e-mail [email protected]

Manual de novas funcionalidades

Um tutorial em vídeo disponível nesta página apresenta o modo de funcionamento do site, as novas funcionalidades e como usá-lo para extrair dados relevantes sobre liberdade de expressão e de imprensa no Judiciário brasileiro. Abaixo, segue uma breve explicação com a visualização dos novos campos. 

Como indicado, nesta nova fase do projeto Ctrl+X, estão disponíveis alguns processos que não apresentam pedidos de retirada, mas ainda assim tratam de algum conteúdo. Por isso, na parte superior do infográfico agora estão disponíveis duas ferramentas de seleção: um seletor entre processos com todos os autores e outro que se refere somente a políticos; e um novo em que é possível selecionar os processos com pedido de retirada de conteúdo, os que não há pedido de retirada, ou ambos. 

A respeito dos pedidos de retirada, podem ser filtrados somente os que tem esse pedido, somente os que não tem esse pedido ou ambos, com apenas um clique no interruptor. 

No infográfico foi incluída uma aba de filtros denominada “Mais Filtros”. Ao clicar nela, surgem as quatro novas categorias que podem ser combinadas com os outros filtros disponíveis. 

As novas categorias podem ser encontradas tanto no banco de dados quanto no infográfico do site. O banco de dados está disponível para download no formato de planilha, no canto inferior direito do infográfico, e as novas categorias aparecerão como as últimas 4 colunas da tabela. 

Por fim, o usuário pode conferir os rankings ao final da página que resumem as informações mais relevantes extraídas do banco de dados, como mostra a imagem abaixo. 

 

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