Clãs de assassinos confessos de Dom e Bruno recebem seguro defeso há dez anos
  • 01.06
  • 2023
  • 09:00
  • Sérgio Ramalho (Atalaia do Norte), Imagens: Marcos Tristão (Atalaia do Norte), Caê Vatiero (São Paulo) e Angelina Nunes (Rio de Janeiro)

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Clãs de assassinos confessos de Dom e Bruno recebem seguro defeso há dez anos

Presos dias depois de executar o jornalista Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira, na manhã de domingo, 5.jun.2023, às margens do rio Itacoaí, em Atalaia do Norte, os assassinos confessos Amarildo da Costa de Oliveira, o Pelado, e Jefferson da Silva Lima, o Pelado da Dinha, receberam respectivamente R$ 7.184 e R$ 10.932 de seguro defeso. Um levantamento do Programa Tim Lopes, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), revela que parentes dos dois acusados recebem o pagamento destinado a pescadores artesanais há dez anos.

Amarildo e Jefferson não foram os únicos a se beneficiar com pagamentos do seguro defeso entre os nomes investigados pela Polícia Federal, por suspeita de participação no crime e em uma organização criminosa envolvida em invasões predatórias à Terra Indígena Vale do Javari. Eliclei e Oseney Oliveira, irmãos de Pelado, receberam, respectivamente, R$ 4.848 e R$ 7.248. Conhecido como Dos Santos, Oseney também foi preso e denunciado pelo Ministério Público Federal por envolvimento nas mortes de Dom e Bruno.

Além dos irmãos de Amarildo Pelado, o levantamento da Abraji identificou como beneficiária do programa de assistência a mulher do assassino confesso, Josenete Campos de Freitas, que nos últimos dez anos recebeu o maior valor acumulado: R$ 34.407. Na sequência, está Laurimar Lopes Alves, o Caboclo, que levou R$ 33.747 e Romário Oliveira da Silva, primo de Pelado, com a quantia de R$ 32.656. Na relação constam ainda seu cunhado, Jânio Freitas de Souza, e Manuel Vitor Sabino da Costa, o Churrasco, que receberam o seguro em períodos distintos. 

O seguro defeso é pago pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) a pescadores artesanais durante o período em que a captura de determinadas espécies é  proibida para garantir a sua preservação e a subsistência das famílias de pescadores. No caso do pirarucu, a pesca é vedada durante todo o ano por conta do risco de extinção, exceto nas áreas de manejo autorizadas pelo Ibama.

Embora os citados acima tenham recebido pagamentos do programa, totalizando a quantia de R$ 144.508 de 2013 a 2023, o inquérito da Polícia Federal indica a participação do grupo em uma organização criminosa voltada à invasão da TI Vale do Javari para a pesca predatória, especialmente, do pirarucu. Amarildo Pelado figura como o chefe do núcleo com base na vila ribeirinha de São Gabriel, às margens do rio Itacoaí, onde vive a maior parte de sua família.

No organograma elaborado pela PF, Jânio de Souza aparece como chefe do grupo de pescadores predatórios de São Rafael. Há ainda um terceiro grupo, que tem como base Benjamin Constant, cidade vizinha a Atalaia do Norte. As investigações apontam Pelado como o principal elo dos invasores da TI com Rubens Dário da Silva Villar, o Colômbia, citado como o financiador das expedições predatórias no território demarcado.

Colômbia é suspeito de comandar uma rede de narcotráfico a partir de um enclave às margens do rio Javari, na fronteira entre o Brasil e o Peru. Ele foi preso e denunciado à Justiça Federal em Tabatinga, cidade na tríplice fronteira (Brasil, Colômbia e Peru). O financiamento das expedições predatórias na TI Vale do Javari seria uma forma de diversificar suas atividades ilegais, aumentando seus lucros.

De acordo com o inquérito, Colômbia teria fornecido a Pelado a embarcação e o motor 60HP usados nas ações predatórias dentro do território indígena. A parceria com o narcotraficante teria motivado a sua mudança de São Gabriel para Benjamin Constant, onde consta seu cadastro de inclusão no programa de assistência. 

Embora Pelado e seus familiares tenham recebido regularmente os valores do seguro, a investigação da PF indica que o grupo seguiu praticando a pesca predatória do pirarucu, especialmente no interior da TI. É o que revela um trecho do inquérito policial, que descreve a apreensão de uma embarcação carregada com pirarucus capturados nos dias em que a polícia realizava buscas pelos corpos de Bruno e Dom.

A embarcação estava escondida em meio à vegetação, num furo entre os rios Itacoaí e Javari. Indígenas e ribeirinhos do Amazonas chamam de furos os trechos de matas inundados pelas cheias dos rios. O movimento sazonal das águas, que em algumas regiões sobem mais de dois metros, possibilita a navegação em canoas e barcos de pequeno porte.

Habituados ao movimento dos rios no Vale do Javari, ribeirinhos e indígenas utilizam os furos como atalhos. Contudo, essas passagens também acabam sendo empregadas para esconder peixes, animais, madeira e outros produtos extraídos ilegalmente do território indígena. Como o acesso a esses atalhos depende de conhecimento, dificilmente as equipes de PF — compostas em grande parte por policiais vindos de outras regiões do país — chegam a esses locais. 

Contudo, no período de buscas aos corpos de Dom Phillips e Bruno Pereira, as equipes da PF e da Polícia Civil do Amazonas contaram com o auxílio das lideranças da União Indígena dos Povos do Vale do Javari, a Univaja. Foi o trabalho em parceria que levou o grupo a delimitar as áreas de exploração às margens dos rios e em meio à floresta. Numa dessas ações, os agentes localizaram o barco usado pelo bando de Amarildo Pelado para ocultar pirarucus capturados ilegalmente.

A descoberta comprovou que o bando chefiado pelo assassino confesso seguiu invadindo a TI para realizar pesca e caça predatórias após as execuções do indigenista e do jornalista inglês. A manutenção da prática ilegal, somada ao fato de que a família é beneficiária do seguro defeso, coloca em xeque uma das estratégias da defesa. Os advogados dos três presos pelos assassinatos argumentam que eles foram levados ao desespero financeiro pela fiscalização de Bruno Pereira.

A tese se enfraquece diante dos valores do seguro defeso recebidos por integrantes do grupo chefiado por Pelado. Na denúncia recebida pela Justiça Federal, os procuradores da República ressaltam ainda que Amarildo e Jefferson decidiram executar o indigenista para perpetuar as expedições predatórias no Vale do Javari. O jornalista Dom Phillips teria sido morto por ter testemunhado o crime.

Ameaça aos indígenas 

Pouco mais de cinco meses depois dos assassinatos de Dom e Bruno, Romário Oliveira da Silva foi detido por agentes da PF na comunidade ribeirinha de São Gabriel, às margens do rio Itacoaí, em Atalaia do Norte. Ele foi identificado como o responsável por ameaçar de morte e atirar em um grupo de indígenas da etnia Kanamari, na manhã de quinta-feira, 24.nov.2022, como mostrou reportagem da Abraji. Primo de Amarildo Pelado, Romário figura entre os beneficiários do seguro defeso. Apesar de ter recebido mais de R$ 32 mil do programa de assistência em dez anos, ele continuou a praticar a pesca predatória na TI. 

De acordo com relatos colhidos pela Associação dos Kanamari do Vale do Javari, Romário foi flagrado por volta das 9h30 do dia 9.nov.2022, próximo à localidade conhecida como Volta do Bindá, na calha do rio Itacoaí, dentro da TI Vale do Javari. Ao menos 30 indígenas da etnia, a maioria mulheres e crianças, retornavam em canoas de um encontro de lideranças da Univaja, quando avistaram os invasores que estavam em um barco carregado com pirarucus e tracajás.

No primeiro momento, os invasores, que tinham os rostos cobertos por camisas,  ofereceram peixes e alguns quelônios em troca do silêncio dos indígenas. Uma das lideranças recusou a oferta, dizendo que a pesca e a caça predatórias eram proibidas. Foi nesse momento que Romário Oliveira mostrou o rosto e a ameaçou apontando uma espingarda de caça na direção de sua cabeça.

Ao ser ouvida por agentes da PF, a indígena — não identificada por questão de segurança — ressaltou que, ao fazer a ameaça, o primo de Pelado teria dito: “Esse tipo de atitude teria causado as mortes de Bruno e Dom”. 

Em seguida, o agressor acrescentou que não a mataria naquele instante por haver muitas crianças no barco. O suspeito teria retirado o cabo de força do motor da embarcação e atirado nos cascos de outras duas canoas, causando pânico.

Outros benefícios recebidos

Além do seguro defeso, o clã dos assassinos confessos recebeu nos últimos dez anos mais três benefícios pagos pelo governo federal. Josenete Campos de Freitas, esposa de Pelado, recebeu ao todo R$ 56.789 de Bolsa Família, Auxílio Brasil e Auxílio Emergencial. Já o primo de Pelado, Romário Oliveira da Silva, recebeu R$ 52.761. Os demais envolvidos receberam apenas Auxílio Emergencial no ano de 2020.

Cunhado de Amarildo Pelado, Jânio Freitas de Souza, além de receber esses benefícios, também constava da folha de pagamento da Prefeitura de Atalaia do Norte, como mostrou a Abraji em reportagem publicada em 5.set.2022. Souza não era o único investigado por envolvimento no assassinato de Bruno e Dom a trabalhar no Executivo municipal. Otávio da Costa Oliveira, irmão de Pelado, e Manuel Vitor Sabino da Costa, o Churrasco, também haviam sido nomeados na gestão do prefeito Dênis Linder Rojas de Paiva (UB).

Jânio de Souza (matrícula 8888) e Manuel Sabino (matrícula 6532) ocupavam a função de auxiliar de serviços gerais e Otávio Oliveira (matrícula 8356), de microscopista, respectivamente, nas secretarias de Interior, Educação e Saúde. De acordo com a folha de pagamento de julho de 2022, Souza e Sabino receberam salários de R$ 1.212 e Oliveira, de R$ 1.750. Embora tenham sido detidos pela PF em 5.ago.2022, data em que os assassinatos de Dom e Bruno completaram dois meses, os três servidores só foram exonerados em outubro, segundo o prefeito.

De acordo com o levantamento realizado pela Abraji, os três receberam juntos entre 2021 e 2022 ao menos R$ 45.594 em salários pagos pela prefeitura. Os dados foram obtidos com base nas folhas de pagamento disponibilizadas pelo Portal da Transparência de Atalaia do Norte. Manuel Sabino e Oseney Costa também haviam sido contratados em anos anteriores, em 2016 e em 2019, respectivamente. O site contém informações duplicadas ou faltantes que não permitem o acesso completo aos dados — previsto pela Lei de Acesso à Informação (12.527/2011). A Abraji cobrou uma resposta, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.

Em entrevista ao Programa Tim Lopes, da Abraji, Dênis Paiva afirmou desconhecer o envolvimento dos dois no crime. O prefeito acrescentou ter determinado a exoneração ao tomar conhecimento pela imprensa das detenções. Segundo Paiva, ambos tinham sido nomeados por indicação de vereadores. Sem citar os nomes dos políticos, o prefeito afirmou não ter ligação com Amarildo. “Conheço os ribeirinhos que vivem em São Gabriel e São Rafael, mas não tenho relação nenhuma com o Amarildo. Fui à região após o crime como prefeito e não para defendê-lo. Posso garantir que tive mais votos dos indígenas do que dos ribeirinhos”, acrescentou. Dênis Paiva foi flagrado pela imprensa ao visitar a casa da mãe de Amarildo, em São Gabriel, dois dias após a prisão do assassino confesso.   

Além dos dois detidos pela PF, o levantamento da Abraji identificou outro nome da família de Amarildo na folha de pagamento da prefeitura: Manuel Vitor Sabino da Costa, o Churrasco. Ele teria um encontro com Bruno e Dom na manhã em que eles foram executados e esquartejados. Churrasco não teve a prisão decretada, mas segue sendo investigado por suspeita de envolvimento na tocaia ao indigenista e ao jornalista inglês.

Churrasco constava da folha de pagamento da Secretaria de Educação, como auxiliar de serviços gerais, com salário de R$ 1.212. Ele figura como suspeito de integrar a organização criminosa envolvida nas invasões de pesca predatória na TI Vale do Javari. Apesar das suspeitas, o tio de Amarildo recebeu R$ 8.704 de seguro defeso.  

O legado de Bruno e Dom

*A Abraji integrou uma investigação internacional colaborativa chamada Bruno and Dom Project, coordenada pelo Forbidden Stories que contou com mais de 50 jornalistas de dez países. 

Assinatura Abraji