América Latina: ameaças à liberdade de expressão e de informação agravam crise da saúde
  • 08.04
  • 2020
  • 09:00
  • Paula Martins

Liberdade de expressão

América Latina: ameaças à liberdade de expressão e de informação agravam crise da saúde

O primeiro caso de covid-19 na América Latina foi confirmado no Brasil, em 26.fev.2020, seguido rapidamente por notícias de casos suspeitos no Equador, no México e na Argentina. O vírus chegou "atrasado" na América Latina, quando a situação já era considerada séria na China, no Irã e na Itália, e vinha se espalhando rapidamente em outros lugares.

Isso significava que os governos da região tinham algum tempo para se preparar para a chegada do coronavírus, cuja urgência já havia sido apontada por especialistas. As providências, no entanto, não eram prioridade para todos.

Alguns líderes, como Donald Trump, Jair Bolsonaro, Andrés Manuel López Obrador (AMLO) e Daniel Ortega optaram por negar ou subestimar a gravidade da crise. Escolha perigosa, já que pesquisadores médicos e governos de países duramente atingidos pela pandemia destacaram o impacto mortal de uma tomada de decisão lenta.

Estudo recente do Imperial College London estima que de 1,3 milhão a 40 milhões de pessoas poderiam morrer em todo o mundo pela covid-19. A diferença se resume a "impactos previstos de mortalidade na ausência de intervenções ou distanciamento social espontâneo comparado ao que pode ser obtido com políticas destinadas a mitigar ou suprimir a transmissão".   

A chegada da covid-19 na América Latina terá outros efeitos duradouros.

Atualmente, 95% das crianças na região estão sem aulas e, de acordo com a Unicef, "se o fechamento das escolas se prolongar, há grande risco de as crianças ficarem para trás no aprendizado e tememos que os alunos mais vulneráveis não voltarão mais à escola." Quanto à economia, conforme descrito pela revista Economist, "o vírus atingiu um paciente que, em termos econômicos, tem uma doença grave preexistente". O crescimento econômico anual na América Latina tem sido baixo; pequenas empresas e uma mão de obra informal representam uma parcela significativa da economia e serão desproporcionalmente impactadas pela recessão que provavelmente se seguirá à pandemia.

A exacerbação da desigualdade social é outra preocupação. Em entrevista ao El País, Eliana Silva, da Redes da Maré, no Rio de Janeiro, enfatizou que o coronavírus vai escancarar a desigualdade social da vida nas favelas. Não há espaço para distanciamento social em pequenas casas com pouca ventilação e acesso restrito à infraestrutura urbana, como água e esgoto.

O gênero também desempenhará papel importante, evidenciando tanto os impactos de gênero da pandemia de coronavírus hoje, como em um no médio prazo.

A covid-19 também traz grandes riscos às sociedades democráticas e aos direitos humanos — incluindo o direito à liberdade de expressão e de informação. Um rápido giro pela região atesta isso.


Informações insuficientes e desinformação em excesso

O direito de acesso à informação pública não se limita aos pedidos de informação [solicitações de FoIA (Freedom of Information Act – Lei de Acesso à Informação – LAI), como são conhecidas em alguns países] apresentados a órgãos públicos. Inclui uma responsabilidade estatal mais ampla de produzir proativamente informações relevantes; divulgar essas informações de maneira significativa e facilmente compreensível; e criar um contexto informativo no qual dados e notícias oficiais sejam vistos como confiáveis, relevantes e precisos.

Apesar dessa obrigação, muitos países da região ainda têm dificuldades para fornecer a seus cidadãos informações abrangentes sobre saúde, conforme indicado por vários estudos. A chegada do coronavírus intensificou esse problema.

No Brasil, por exemplo, a comunidade médica aponta para um número expressivo de subnotificações da covid-19 no país, não apenas devido a casos não testados, mas também devido a erros no protocolo e em formulários enviados a hospitais e clínicas no início da pandemia para a coleta de dados sobre óbitos. Atualmente, a discrepância no número de casos divulgados pelas autoridades federais e estaduais contribuiu para a incerteza.

Na Venezuela, de acordo com Espacio Público, membro do IFEX, o Ministério da Saúde deixou de publicar boletins epidemiológicos desde 2014. Embora alguns boletins tenham escapado em 2016 e 2017, o ministro encarregado foi demitido, supostamente porque os dados mostravam deterioração e aumento da mortalidade infantil e dos casos de malária e difteria.

Durante a crise do coronavírus, funcionários públicos deram declarações públicas sobre a pandemia, mas as informações divulgadas foram genéricas e desatualizadas.

Enquanto a maioria dos países da região adotou Leis de Acesso à Informação específicas, muitos já declararam algum tipo de 'estado de emergência' e, consequentemente, suspenderam os prazos para o processamento de procedimentos administrativos, incluindo os pedidos de acesso à informação. El Salvador, México, Honduras e Brasil são alguns exemplos.

Alterações da Lei de Acesso à Informação no Brasil foram introduzidas por um medida provisórial muito criticada — inclusive por Abraji e Artigo 19, membros do IFEX — por sua imprecisão, contradição e por limitar o direito dos indivíduos de receber informações durante uma crise de saúde pública. Três dias depois, o decreto foi suspenso por decisão do Supremo Tribunal Federal.

A situação no Brasil é agravada pela quantidade de desinformação que circula, principalmente pelas redes sociais. Informações conflitantes foram divulgadas por diferentes autoridades, com o presidente da República e apoiadores insistindo em negar a seriedade da pandemia. Bolsonaro vem refutando dados divulgados por outros países e pela Organização Mundial da Saúde. Quando questionado por jornalistas, atacou a imprensa, acusando-a de causar histeria, e se refere ao covid-19 como “manobra” e  "fantasia" da mídia.

Em Honduras, apesar das limitações impostas aos pedidos de informação, o governo circulou internamente uma lista dos casos confirmados de pessoas infectadas no país, com nomes e dados pessoais, incluindo idade e endereço. A lista vazou. O incidente evidencia os baixos padrões aplicados pelo Estado no tratamento de informações confidenciais de saúde e constitui grave violação do direito à privacidade.


Censura e uso abusivo de força

Honduras foi outro país a aprovar, por decreto presidencial, uma legislação de emergência. O Decreto Executivo PCM 021-2020 definiu que as garantias constitucionais deveriam ser suspensas por sete dias, incluindo a liberdade de expressão e a proibição de censura. A rede  IFEX-ALC pediu a revogação de tal ato.

Na Venezuela, o membro local do IFEX, IPYS Venezuela, documentou vários casos em que os jornalistas foram impedidos de cobrir a situação da covid-19 no país, inclusive por meio do uso desproporcional da força. Alguns meios de comunicação também receberam ameaças, e o governador de Fálcon acusou um meio de comunicação regional de terrorismo.

Talvez um dos casos mais emblemáticos tenha sido a prisão do jornalista Darvindson Rojas pela Polícia Nacional Bolivariana em 21.mar.2020. Os policiais alegaram estar investigando um caso suspeito de covid-19, mas logo se referiram aos tuítes que Rojas havia postado, relatando o surto de coronavírus. Além de prender o jornalista, os policiais confiscaram seu equipamento. Seus pais também foram presos, mas libertados algumas horas depois. Na noite de 23.mar.2020, Rojas foi acusado de incitação pública e discurso de ódio, durante uma audiência na qual foi representado por um defensor público, em vez de seus advogados de confiança. Em 27.mar.2020, a rede IFEX-ALC exigiu que as autoridades venezuelanas libertassem Rojas e retirassem as acusações contra ele. O jornalista foi libertado em 31.mar.2020, mas as acusações e o processo contra ele continuam.


Privacidade e uso da tecnologia

Os países da região têm lutado para proteger o direito à informação e o direito à privacidade, como evidenciado pelo caso hondurenho mencionado anteriormente. Na Colômbia, os membros do IFEX, Fundación Karisma e FLIP, chamaram a atenção para os possíveis riscos à privacidade impostos por uma recente regra excessivamente ampla aprovada pelo Departamento de Indústria e Comércio que permite que alguns órgãos governamentais peçam  dados de usuários junto a empresas de telecomunicações.

De fato, é no campo da tecnologia que esse problema se mostrou complexo — governos em todo o mundo, assim como na região, estão recorrendo a aplicativos e dispositivos de rastreamento para lidar com a pandemia, o que pode estimular a vigilância, com implicações sérias no longo prazo.

Em 20.mar.2020, um grupo de organizações latino-americanas, incluindo os membros do IFEX Fundación Karisma, Derechos Digitales, Asociación por los Derechos Civiles (ADC) e Red en Defensa de los Derechos Digitales (R3D), divulgou declaração na qual chamam atenção para iniciativas preocupantes no Equador, na Colômbia, no Chile, no Paraguai e no Uruguai. Além de prejudicar o direito à privacidade, algumas iniciativas não se mostraram eficazes e outras podem estigmatizar grupos marginalizados, se aplicadas sem protocolos claros.

A declaração pede aos Estados que considerem que o uso da tecnologia digital para combater a pandemia deve estar sujeito aos padrões de necessidade e proporcionalidade, tendo em vista seus possíveis efeitos negativos sobre os direitos fundamentais.


O outro lado da moeda: acesso à internet

Enquanto algumas organizações se preocupam com o uso abusivo de tecnologia pelos governos durante a pandemia de covid-19, o OBSERVACOM nos lembrou da necessidade de garantir que as pessoas tenham acesso à internet e a telecomunicações para garantir a circulação de informações críticas e evitar o isolamento. A organização mapeou iniciativas importantes, como a proibição de suspender o serviço devido à inadimplência, e esforços para assegurar a prestação dos serviços mesmo com o aumento do tráfego online causado pela quarentena e pelo distanciamento social.


Alguns recursos

Os países estão enfrentando pressões sem precedentes para responder à propagação do coronavírus, mantendo o compromisso com os direitos humanos. As autoridades internacionais e regionais de direitos humanos lembraram aos Estados suas obrigações, incluindo o dever de garantir o direito à liberdade de expressão, de informação e à privacidade.

No dia 27.mar.2020, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) lançou um Gabinete de Coordenação e Resposta Rápida para combater a pandemia da covid-19. A CIDH reafirmou sua intenção de ajudar os países na proteção e defesa dos direitos humanos durante a crise. O Gabinete vai coletar e sistematizar informações, além de articular e formular propostas para a tomada de decisões pela CIDH.

Os membros do IFEX nas Américas estão lançando excelentes recursos para apoiar a defesa dos direitos fundamentais durante a pandemia. 

Aqui estão alguns deles:


(*) Texto publicado originalmente em IFEX (em inglês e espanhol). Traduzido por Susana Carpenter.

Assinatura Abraji