Quem mais mandou matar Gleydson Carvalho?

Bob Fernandes

Gleydson Carvalho

A “Revista Regional”, que deveria ter começado ao meio dia na Liberdade FM 90.3, estava 25 minutos atrasada. O operador, Ricardo Rodrigues, desligou o microfone e subia uma gravação quando a porta do estúdio se abriu. “Todos os dias”, conta Ricardo, ele revê a cena, em câmera lenta.

Um homem, que depois se saberia ser Israel Marques Carneiro, 31 anos à época, estava em pé, à entrada do estúdio. Ricardo viu o cano prateado do 38. Levantou os braços num gesto automático, e rogou:

-Por favor, não me mate não!

No outro lado da mesa, segundos antes da reação de Ricardo, Gleydson Cardoso de Carvalho, 36 anos, radialista e âncora da “Revista Regional”, se assustou.

Levantou-se ao perceber, pelo visor de vidro, um vulto e a porta do estúdio sendo aberta. O primeiro tiro atingiu Gleydson na cabeça.

Antes de disparar mais dois tiros, já dentro do estúdio, o pistoleiro Israel virou-se para o operador Ricardo e ordenou “Se abaixe”.

Trêmulo, agachado debaixo da mesa, Ricardo ouviu mais dois disparos, que atingiram Gleydson no tórax.

A Liberdade FM então estava instalada à Rua Antonio Zeferino Veras, na litorânea e plácida Camocim, município de 62.700 habitantes distante 380 quilômetros da capital, Fortaleza, ao norte.

Fundada em Martinópole, distante 55 quilômetros, depois do crime a Liberdade FM foi transferida para Granja, município no meio do caminho entre Camocim e Martinópole.

Martinópole, lugarejo de 11 mil habitantes é, como se verá, reduto de personagens centrais em mais uma história de jornalista assassinado.

Pouco depois do meio dia e vinte de 6 de agosto de 2015 a secretária Francisca Nataline Pedrosa de Oliveira, a “Nat”, abriu a porta da rádio para Israel entrar. Thiago Lemos da Silva, 22, entrou junto e rendeu Nataline:

-Fica quieta, senão eu te mato!

A secretária “Nat”, 19 anos, esquecera a recomendação diária de Gleydson, reforçada pouco antes pela esposa do radialista, Maria Alderly Teles de Alencar, 38 anos:

-A mulher dele tinha me ligado e, como sempre, pediu para não me esquecer de colocar o cadeado na porta (…) esqueci, mas não ia adiantar, eles mostraram um papel como se fossem colocar um anúncio…

Durante o mês que se seguiu Nataline “não dormia direito, não comia direito, não tomava banho direito, nem ao banheiro ia sozinha…”.

Nataline, a “Nat” não esquece. E ainda não entendeu porque o pistoleiro, que a mantinha sob a mira do 38 de cano preto, sorriu ao ouvir os tiros.

No dia 2 de agosto deste 2017, a pedido do promotor Evânio Pereira de Matos Filho nas suas “alegações finais”, Saulo Gonçalves Santos, 31, juiz há quatro anos, titular na Comarca de Camocim, Ceará, decretou:

-…prisões preventivas de Valdir Arruda Lopes e Francisco Pereira da Silva.

Francisco, 49 anos, conhecido como “Chico dentista”, é tio de James Martins Pereira Barros, conhecido como James Bell, prefeito de Martinópole à época do assassinato.

Valdir Arruda Lopes, segundo informações -confirmadas pela promotoria- trabalhava para uma empresa de água mineral de James Bell. Em Martinópole.

Valdir Arruda Lopes está preso. Francisco Batista, o “Chico dentista”, fugiu e o promotor Evânio Matos desconfia de vazamento da ordem de prisão.

A promotoria concluiu que os mandantes do crime são “Chico Dentista” e seu irmão, João Batista Pereira da Silva, 43, o “Batista dentista”. Tios de James Bell.

Tramita uma investigação paralela para apurar outros possíveis envolvidos. Envolvidos no apoio financeiro e na ordem para execução.

Thiago Lemos | Foto: Divulgação/Polícia Civil

Os pistoleiros, Thiago e Israel -esse conhecido também como “Baixinho” ou “Jefferson”- estão foragidos. Acusadas por cumplicidade, suas namoradas, Regina Rocha Lopes, 22, e Gisele de Souza do Nascimento, 25, estão presas. Elas e demais à espera de julgamento.

O Ministério Público Estadual denunciou também, por envolvimento na organização criminosa, Francisco Antônio Carneiro Portela, o “Dudu”, 20, sobrinho do pistoleiro Israel, e Daniel Lennon Almada Silva, 34, ex-tesoureiro da Prefeitura de Martinópole e primo do então prefeito James Bell.

Para Francisco Portela e Daniel Lennon, por insuficiência de provas o ministério público pediu e o juiz atendeu: eles não irão a julgamento.

O promotor Evânio Matos afirma:

-Não há dúvida em relação aos executores e ao primeiro escalão de quem havia contratado. Está tramitando a ação penal. Há uma parte pública e outra sigilosa. Houve nove denunciados. Foram coletadas, até o momento, provas de envolvimento de sete deles…

Segundo o promotor, Gleydson e James Bell eram “desafetos”. À parte outros depoimentos nesse mesmo sentido, na “Vara Única Vinculada de Martinópole” está uma prova da inimizade.

Lá se encontra o registro de uma ação movida pelo então prefeito de Martinópole, James Bell, contra Gleydson Carvalho.

O número do processo é o 258-31.2015.8.06.0199/0. A ação de origem, inquérito policial. Data da distribuição, 20 de julho, 17 dias antes do assassinato de Gleydson.

Relata o promotor Evânio:

-Começou uma rivalidade muito grande entre eles. Isso foi documentado. James o acusa de extorsão, diz que a rádio queria a publicidade institucional de Martinópole para não fazer críticas.

Por seu lado, Gleydson alegava que a prefeitura criava empecilhos para liberar o alvará de funcionamento. Depois teriam fixado um valor exorbitante da taxa, “o que inviabilizou a permanência da rádio lá”, diz o promotor.

Por essa razão a rádio se mudou de Martinópole para Camocim.

Testemunhas disseram à promotoria que o verdadeiro dono da Liberdade FM seria Romeu Aldigueri (PDT), ex-prefeito e atual procurador-geral de Granja.

-No papel, figuram outras pessoas. Cerca de uma semana após a morte de Gleydson, ele (Aldigueri) esteve aqui no meu gabinete, preocupado sobre sua segurança, e relatou que a esposa dele não queria mais morar em Granja, queria ir para Fortaleza e um carro blindado- informa o promotor Evânio Matos.

Em juízo, a secretária da rádio, Nataline, e o operador de áudio, Ricardo Rodrigues, contaram que Gleydson, filiado ao PT, brincava sobre vir a ser candidato a prefeito de Martinópole e ter a campanha eleitoral bancada por Aldigueri.

Dois anos após o assassinato a família de Gleidson ainda tentava receber valor financeiro a que teria direito.

Repórter e fotógrafo deste documentário procuraram Romeu Aldigueri em Granja. Informados que o procurador estava em almoço e retornaria, às duas da tarde, hora marcada, estávamos de volta.

A secretária do procurador-geral disse então que Aldigueri partira, subitamente, para Fortaleza. Deixamos o número do telefone para contato. Não houve retorno.

Âncora do “Revista Regional”, programa sobre política local e crime, Gleydson costumava fazer comentários críticos à administração de Martinópole.

Há registros. Direta ou indiretamente Gleydson se referia a James Bell como “um prefeitinho aqui da região”, “imperador”, “ditador”, “com rei na barriga”, e até “safado” e “cachorro”.

Dizia, explicitamente:

-Fica enchendo o saco de rádio… Só andando de carro importado às custas do povo. Prefeito, desça da sua Hillux, volte às comunidades. O povo passa fome enquanto o senhor arrota riqueza…

Sucesso de Gleydson na região ao criticar o nepotismo na prefeitura de Martinópole: “É a família toda mamando…”.

As reações eram imediatas. “Era eu quem recebia as ameaças por telefone. Era comum. Todo dia. Não dava para ver o número. Geralmente era voz de homem. Dizia para tirar Gleydson do ar senão ele ia acordar com a boca cheia de formiga”, lembra a secretária, Nataline.

Marcos Coelho, 48, é ex-vice-prefeito de Camocim pelo PDT e hoje vereador pelo PSDB. Assistente de acusação no caso, cobra:

-Gleydson era competente e extremamente combativo, ele tinha um programa dos mais ouvidos no interior do Ceará (…) ele foi morto porque fazia severas críticas à administração de James Bell (…) Se a motivação do crime é essa, mais do que justo ouvir o ex-prefeito…

O promotor rebate: “A oposição de uma prefeitura era aliada da situação da outra cidade vizinha”. E explica porque James Bell não foi ouvido à época:

-Enquanto era prefeito ele tinha foro privilegiado, só poderia ser investigado e processado no Tribunal de Justiça. Aqui, eu só podia encaminhar para o procurador-geral de Justiça. Como ele não foi reeleito em 2016, agora perdeu esse foro por prerrogativa de função…

O objetivo do crime parece evidente para o Ministério Público:

-Iriam colher o silêncio e o medo de opositores para que a reeleição de seu grupo familiar não encontrasse maiores resistências.

A única entrevista concedida por James Bell foi ao site 180, em Março de 2016. Rômulo Rocha, acompanhado da jornalista alemã GritEggrichs, da Rádio Nacional da Alemanha, ouviu o então prefeito. Que garantiu:

-Não sou envolvido. Posso até ter sido investigado (no início), mas…se tivesse (algo), já teriam me envolvido. (…) A pessoa certa para você falar é com o Herbert (delegado) e com o promotor (Evânio).

James Bell disse então “não lembrar” a última vez em que vira o tio, “Batista dentista”, e que não tinha contato com ele. E protestou conta o uso da expressão “tio do prefeito James Bell”. Disse ainda “abominar a violência”.

Na cadeia de Camocim, rua ao lado do Fórum, conversamos com Gisele de Souza do Nascimento, ex-namorada do pistoleiro Israel, presa há mais de dois anos.

Na cela, superlotada, mulheres se amontoam pelo chão. Uma delas geme sem parar, e Gisele explica:

-São vinte e uma mulheres na cela, tem pessoas doentes, gente que sangra desde que cheguei, e não tem remédio, não tem médico…

Gisele conta que estava morando com Israel, o “Baixinho”, em Urópoles, no Pará. E que “Batista dentista” foi quem telefonou para o pistoleiro, várias vezes, contratando “um serviço no Ceará”.

Gisele não sabe quem indicou os serviços do pistoleiro para “Batista Dentista”. Thiago, depois de preso com a namorada Regina em Senador Canedo, Goiás, referiu-se ao intermediário como “Roberto”.

Em junho deste 2017 Thiago fugiu de uma penitenciária situada na região metropolitana de Fortaleza.

Israel, segundo Gisele, já fez muitos “serviços” em parceria com o mesmo Thiago. Inclusive ao matarem um traficante em Triangulo do Marco, no mesmo Ceará.

Contratados, acompanhados por suas namoradas Regina e Gisele, para planejar o crime Thiago e Israel se hospedaram uma semana antes numa pousada em frente à rádio. Feito o reconhecimento ficaram numa fazenda do próprio “Batista Dentista” no município de Senador Sá, a 80 km.

Temendo chamar a atenção da vizinhança, Batista intermediou para o quarteto o aluguel de um imóvel na localidade de Serrota no mesmo município. O proprietário, Tubias Ferreira de Carvalho, depois confirmaria o fato.

Na véspera da execução juntou-se ao grupo Antônio Carneiro Portela, o “Dudu”, sobrinho do pistoleiro Israel, com tarefas para ajudar a disfarçar a ação. Regina, namorada do pistoleiro Thiago, viajou, sairia de cena até o crime ser consumado.

Outro denunciado, Daniel Lennon, havia pernoitado na fazenda do tio, “Batista Dentista”, e depois encontraria dificuldades para explicar à Polícia: por que sua moto estava abandonada na mesma rota de fuga dos executores? Roubo, segundo Lennon.

A viúva de Gleydson, Maria Alderly Teles de Alencar, relatou em depoimento: dias antes, num sinal fechado, dois homens numa moto pararam acintosamente ao lado do carro em que estavam ela e o marido. E arrancaram em velocidade.

Na quinta-feira 6 de agosto o homicídio deveria ter ocorrido mais cedo. Mas Valdir Arruda Lopes não queria que seu Corolla fosse visto perto da cena do crime.

Thiago e Israel deixaram o carro de Valdir e voltaram mais tarde para matar Gleydson. Numa moto que depois seria abandonada.

Durante o inquérito, à época ainda preso, Thiago contou: depois do crime ele e Israel fugiram para a zona rural, onde foram resgatados por Valdir Arruda Lopes e deixados no imóvel alugado.

-Quando os dois voltaram, já bem tarde da noite, disseram que a gente ia embora de madrugada. Uns quarenta minutos depois, a polícia chegou. Eles fugiram, eu e Dudu nos abaixamos, a polícia meteu bala- lembra Gisele.

O delegado regional de Camocim, Herbert Ponte e Silva, 62, recebida uma denúncia seguiu para Senador Sá com três agentes:

-Tínhamos informação de que havia cinco pessoas na casa. Ficou aquele impasse sobre invadir. Quebramos a porta e entramos.

Thiago e Israel fugiram pelos fundos, deixando para trás os dois 38 usados no crime e documentos verdadeiros e falsos. Gisele e “Dudu” foram detidos.

Thiago e Regina escaparam, mas seriam presos em Goiás no mês seguinte, em 24 de setembro de 2015.

O radialista André Ferreira Martins, 27, que substitui Gleydson num dos horários, conclui: “A parte mais delicada do trabalho do jornalista está relacionada à política”. E opina:

-Gleydson levava ao ar reivindicações da população de diversos municípios, questionava o mau funcionamento do serviço público. Despertou a ira de pessoas inescrupulosas que não gostavam das críticas. Temos um alcance regional, chegamos a cinco ou seis cidades, recebemos demanda de vários municípios, mas o conjunto de evidências (no crime) aponta para Martinópole.

Gleydson, pai de duas filhas com Maria Alderly, antes da Liberdade FM trabalhou em emissoras comunitárias e na Rádio Jangadeiro. O estilo, o de sempre.

Minutos antes de Gleydson entrar no estúdio e ser assassinado, Marcílio Marques, radialista, conversou com o colega. E recorda:

-Ele era muito cristalino no programa, sempre procurava levar a verdade à comunidade, e a verdade dói para muita gente. Sempre o alertamos: ‘Pega leve’. Sabíamos das ameaças por telefone, só que ele nunca levou a sério…

Casado e pai de um menino, depois do assassinato André Ferreira Martins repensou seu papel e atuação:

-Modero muito as críticas. Não significa recuar… Analiso o real perigo de estar sentado na cadeira em que um radialista foi assassinado…

Ricardo Rodrigues, o operador de áudio que testemunhou a raríssima cena de um jornalista sendo assassinado dentro do estúdio, diz, passados dois anos:

-Rádio é uma coisa muito perigosa. Não se deve falar muita coisa, ainda mais em termos de política…

Miquéias Isidoro dos Santos, 35, foi contratado pela Rádio Liberdade FM pouco mais de um mês após o assassinato de Gleydson.

Miquéias conta que sequer sonhara em ser radialista, até o dia 12 de outubro de 1995.

Miquéias tinha um irmão, Roberto Rivelino, que se mandara do Ceará para Boa Vista em busca de oportunidades.

Em Roraima, Roberto Rivelino se tornou policial e radialista. Fazia denúncias na rádio em que trabalhava. Foi executado por questões políticas, na saída da emissora.

-A gente soube de onde vinha tudo, quem era o matador, mas, do nada, sumiu todo mundo. O suspeito de ser mandante, um dos nomes fortes da política de Roraima, morreu de câncer.

Para seguir os passos do irmão ele decidiu se tornar radialista, diz Miquéias.

Tornado radialista em memória do irmão radialista assassinado, Miquéias agora trabalha no mesmo estúdio em que foi assassinado o radialista Gleydson Carvalho.

Israel Marques Carneiro

Nataline, a secretária “Nat”, não esquece. E ainda não entendeu porque o pistoleiro que a mantinha sob a mira do 38 de cano preto sorriu ao ouvir os tiros disparados pelo comparsa Israel.

‘Nat” entenderia se soubesse quem é Israel. Ou se ouvisse o que ex-namorada do pistoleiro, Gisele, revela na cadeia.

Ela diz não ter abandonado o pistoleiro ao descobrir que era um “matador” porque quando tentou fazê-lo Israel ameaçou: “Mato sua mãe e sua filha que mora com ela”. Gisele teve a filha aos 17 anos.

A ex-namorada descreve o pistoleiro, história e origem:

-O Israel é um psicopata, é um psicopata mesmo, quando não matava gente ele ficada doido, perturbado, dizendo que tava doido pra matar gente, se cortava e, dizia isso pra mim, se cortava e oferecia o sangue ao ‘inimigo’… Ele falou que quem ensinou a matar foi o pai dele… O pai dele ensinou a matar. Quando ele era pequenininho o pai dele matava gente na frente dele…

Gisele, na cadeia, conta: pelo “serviço”, Israel e Thiago receberiam R$ 9 mil. Só deu tempo para receber a entrada.

Quando, atirando, a polícia entrou na casa alugada em Senador Sá os dois pistoleiros fugiram.

Deixaram para trás a parcela do pagamento já adiantada pela vida de Gleydson: R$1.800.

Outros R$ 200 já tinham sido gastos.