Jornalista canadense agredido no Mato Grosso do Sul relata temer forças de segurança
  • 07.12
  • 2023
  • 16:05
  • Isadora Ferreira

Liberdade de expressão

Jornalista canadense agredido no Mato Grosso do Sul relata temer forças de segurança

“Nunca estive tão preocupado com a minha segurança por parte daqueles que devem ‘servir e proteger’". O desabafo é do jornalista canadense Renaud Philippe, de 39 anos, que, junto a sua esposa e companheira de trabalho, a antropóloga Carol Mira, de 38 anos, foi agredido por homens armados na quarta-feira (22.nov.2023) na zona rural de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul. Em entrevista à Abraji, ele  relatou em detalhes a agressão sofrida no município, que faz fronteira com o Paraguai. Renaud Philippe atua em campos de conflito pelo mundo há 18 anos e relatou nunca ter se sentido tão ameaçado com a leniência das forças de segurança em toda a sua carreira. 

O jornalista realizava a cobertura dos conflitos relacionados à disputa de terras em áreas de demarcação indígena. Enquanto documentavam a Assembleia Aty Guaçu na cidade de Caarapó, Renaud Philippe e Ana Carolina receberam informações sobre um conflito de retomada de terras em Iguatemi. 

O casal decidiu ir ao local e só não buscou apoio da Força Nacional porque foi informado por agentes do Departamento de Operações de Fronteira (DOF) de que "nada de anormal" estava ocorrendo na área. Ao retornarem, o jornalista, a antropóloga e Renato Farac (41), engenheiro florestal que os acompanhava, foram surpreendidos por cerca de trinta homens armados e encapuzados,  que estavam em caminhonetes, na estrada que liga a rodovia 295 à 386, próximo à fazenda Maringá. 

Philippe descreve a situação como uma emboscada, afirmando: “Os agressores tinham sido avisados ​​e estavam prontos para nos receber. Foi uma emboscada. Quem os avisou? Os únicos que sabiam da nossa presença eram estes membros da polícia de fronteira.”

Renaud Philippe e Carol Mira foram jogados no chão, alvos de chutes, socos e ameaças verbais. Durante o ataque, o jornalista teve seus cabelos cortados com uma faca pelos agressores, que também saquearam o carro do casal, levando seus equipamentos de trabalho, incluindo câmera, cartão de memória, dois celulares, documentos e dinheiro. Carol Mira sofreu ameaças de ter seu cabelo cortado com a faca, assim como seu rosto.

Os dois conseguiram escapar e dirigiram por cerca de 120 km até a delegacia de Amambai. Em depoimento, Renaud Philippe contou que, ao avistarem policiais militares no local,  o casal pediu socorro, porém eles foram ignorados. “Quando eu estava caído no chão, na lama, levando chutes, socos e tendo os cabelos arrancados, Carol pediu socorro acionando os Policiais Militares que estavam presentes no local da agressão. Eles desviaram o olhar.”, conta Renaud Philippe.

O jornalista acrescentou ainda que, enquanto prestava depoimento, percebeu dois   veículos circulando na porta da delegacia : “os carros estavam  identificados com o nome da fazenda Maringá. Eles  passaram em frente à delegacia, bem devagar, olhando em nossa direção. Uma forma clara de intimidação. Mais uma vez, quem os avisou? Como eles nos encontraram?”

Os povos Guarani e Kaiowá

Segundo o Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, produzido pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Mato Grosso do Sul contabilizou 78 casos de violência contra indígenas em 2021.

Houve ainda 24 registros de violência decorrente da omissão do poder público. Além disso, foram documentados 35 casos de suicídio, destacando uma situação preocupante que demanda medidas imediatas para garantir a proteção dessas comunidades.

Em lugares como Iguatemi, a fronteira entre interesses pessoais e relações políticas é bastante sutil. O fotojornalista diz que é comum que políticos locais também sejam proprietários de fazendas, criando um cenário onde duas posições antagônicas convergem contra um mesmo grupo: ativistas ambientais, defensores dos direitos humanos, indígenas e comunicadores.

Para o jornalista canadense, a agressão sofrida está diretamente ligada à falta de demarcação das terras indígenas. “Nunca estive tão preocupado com a minha segurança por parte daqueles que devem ‘servir e proteger’. Pelo contrário, foram os povos indígenas que nos ofereceram este espaço seguro. Não estamos diante de atos isolados, estamos diante de uma verdadeira organização que aproveita a falta de reconhecimento legal das terras indígenas para impor violentamente a sua agenda.”

O casal, que está  há dois anos documentando a realidade dos povos Guarani e Kaiowá, informou que a hostilidade em terras de conflito fundiário é constante, levando-os a criar estratégias específicas para garantir sua segurança durante a cobertura no Mato Grosso do Sul.

Os pesquisadores optaram por manter sigilo sobre o propósito de sua presença na área e estabeleceram regras, como evitar mencionar o motivo da visita, não utilizar artefatos indígenas, como colares e pulseiras. Além disso, resolveram não informar a profissão de Carol, que é antropóloga, a fim de evitar possíveis respostas negativas. Como medida de proteção, o casal também mantinha uma estratégia constante de movimento, evitando permanecer por longos períodos no mesmo lugar.

Outros casos de violência: Dom e Bruno

Os casos de violência contra ativistas, jornalistas e comunicadores em áreas de demarcação de terras indígenas não são eventos isolados. O assassinato do jornalista inglês Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira no Vale do Javari (AM), no ano passado, provocou a reação de  entidades nacionais e internacionais dedicadas à defesa do jornalismo e dos direitos humanos.

De acordo com o relato do jornalista canadense, a falta de ações efetivas por parte do poder público nessas regiões pode resultar na limitação da proteção dos povos originários. Esses grupos desempenham um papel crucial na preservação ambiental e têm na terra sua fonte fundamental de subsistência. Renaud Philippe acrescentou: "O clima social está muito tenso há muito tempo, a hostilidade às populações indígenas Guarani é uma realidade há mais de 500 anos. Hoje, há torturas, sequestros, assassinatos, intimidações; esta violência se expressa de múltiplas maneiras."

Diante dos desafios enfrentados, Renaud Philippe e Carol Mira destacam a importância da informação e o papel desempenhado pelo jornalismo. Para o casal, "A informação é uma arma. Quanto mais sabemos, menos julgamos e menos podemos fechar os olhos." Além disso, reforçam seu compromisso de informar: “A violência não nos fará ceder. A onda de denúncias da realidade vivida pelos povos indígenas Guarani no Brasil e em outros lugares é gigantesca, mas temos o coração pesado ao constatar que um homem branco norte-americano deve ser vítima de tal acontecimento para que a mídia abra os olhos sobre estas realidades documentadas.”

A versão desta reportagem em inglês está neste link.

Leia, abaixo, a íntegra da entrevista de Renaud Philippe

Durante os dois anos em que acompanharam a situação dos povos Guarani-Kaiowá, vocês notaram alguma mudança na atmosfera ou no clima social da região que pudesse indicar um aumento de tensões ou um ambiente mais hostil antes das agressões em Iguatemi? 

PHILIPPE. É difícil responder a esta pergunta. Há dois anos coletamos inúmeras histórias que testemunham a violência que o povo Guarani sofre diariamente. Durante dois anos, todos os testemunhos que recolhemos fizeram-nos gelar o sangue. O clima social está muito tenso há muito tempo, a hostilidade às populações indígenas Guarani é uma realidade há mais de 500 anos. Hoje, há torturas, sequestros, assassinatos, intimidações; esta violência se expressa de múltiplas maneiras.

Ao tentar incansavelmente conscientizar a mídia sobre a situação dos Guarani, conseguimos compreender outro tipo de violência, mais insidiosa e desenfreada: o total desinteresse do mundo ocidental, da mídia e dos políticos. Para o mundo inteiro, só existe a Amazônia. O que está acontecendo atualmente na Amazônia é o que a região viveu entre as décadas de 1930 e 1940, quando uma onda de imigração massiva da Alemanha e da Itália encontrou refúgio nestas terras férteis.

Não é difícil olhar para a história para entender de onde vem todo esse ódio. Atualmente mais de 90% da Mata Atlântica foi arrasada em benefício da agricultura descontrolada. Por centenas de quilómetros tudo não passa de monocultura de soja, milho e eucalipto. O estado de Mato Grosso do Sul é muito hostil às questões indígenas. Estamos cientes disso e tentamos por todos os meios manter em segredo os motivos da nossa presença. Nunca contamos a ninguém dos estabelecimentos por onde passamos o que estamos fazendo, não utilizamos objetos indígenas (como pulseira, colares) e nunca divulgamos o fato de Carol Mira ser antropóloga.

Da mesma forma, nunca ficamos no mesmo lugar por muito tempo. Embora muitas vezes intimidados, filmados ou questionados com grande agressividade nos últimos anos, sentimos que o veto ao quadro temporário tornou os ruralistas ainda mais hostis, ainda certos da sua impunidade.

O que você acredita ter desencadeado essa reação violenta? Há fatores específicos, como a falta de ação das autoridades ou tensões crescentes na região, que podem ter contribuído para esse incidente?

PHILIPPE. Quando eu estava caído no chão, na lama, levando chutes, socos e tendo os cabelos arrancados, Carol Mira pediu socorro acionando os Policiais Militares que estavam presentes no local da agressão. Eles desviaram o olhar e foram embora. Não só existe impunidade, mas eu diria mesmo cumplicidade. Quando chegámos perto do local da nova Retomada, encontramos uma viatura da polícia de fronteira. Explicamos-lhes que éramos jornalistas e que trabalhávamos numa reportagem sobre este conflito territorial. Saímos da área para podermos nos comunicar com certas pessoas para avisá-las de que estávamos nesta área.

Quando regressamos, apenas para observação visual, os atacantes tinham, entretanto, sido avisados ​​e estavam prontos para nos receber. Foi uma emboscada. Quem os avisou? Os únicos que sabiam da nossa presença eram esses membros da polícia de fronteira. 

É de conhecimento geral que políticos do estado de Mato Grosso do Sul também são proprietários de terras e têm interesses pessoais neste conflito. Após o ataque, dirigi mais de 120 quilômetros para me refugiar em Amambai, onde estava acontecendo um encontro reunindo várias mulheres Guarani, Kuñangue Aty Guasu. Horas depois, fomos acompanhados pela Defensoria Pública da União até a Delegacia de Polícia Civil de Amambai. Naquele momento, enquanto prestávamos nossos depoimentos, dois veículos identificados com o nome da fazenda Maringá passaram em frente à delegacia, bem devagar, olhando em nossa direção. Uma forma clara de intimidação. Mais uma vez, quem os avisou? Como eles nos encontraram?

É difícil entender que num país como o Brasil, um país de direitos, um país democrático, fosse impossível irmos à polícia para receber ajuda. Durante 18 anos trabalhei em zonas de crise e de conflito onde reina a corrupção. Nunca estive tão preocupado com a minha segurança por parte daqueles que devem “servir e proteger”. Pelo contrário, foram os povos indígenas que nos ofereceram este espaço seguro.

Não estamos diante de atos isolados, estamos diante de uma verdadeira organização que aproveita a falta de reconhecimento legal das terras indígenas para impor violentamente a sua agenda.

Dada a impunidade em casos anteriores envolvendo violência contra indígenas, ativistas e jornalistas, qual é a sua visão sobre como a impunidade pode estar perpetuando esse ciclo de violência?

PHILIPPE. É claro que fazer a pergunta é um pouco como respondê-la. Após esse ataque, optamos, juntos, por não desistir diante da intimidação, por lutar pelas consequências. E dia e noite falávamos para que se fizesse justiça, sabendo que, de outra forma, nada mudaria. O Ministério dos Direitos Humanos colocou-nos agora na lista dos “defensores dos direitos humanos”. Um conceito que, como canadense, eu não conhecia. Se este programa existe é porque existe uma ameaça real para quem envereda por este caminho, para evitar que desistam do seu compromisso.
 
Como você vê o papel da imprensa e do jornalismo na cobertura desses conflitos? Você acha que a exposição midiática pode ter um impacto positivo ou negativo na resolução desses problemas?

PHILIPPE. A informação é uma arma. Quanto mais sabemos, menos julgamos e menos podemos fechar os olhos. Mas não qualquer informação. Você tem que dedicar tempo para entender, analisar, desenvolver vínculos, ir e voltar, de novo e de novo. O papel da imprensa é essencial, acreditamos profundamente nela. Mas devemos incentivar o jornalismo independente e de qualidade, e para isso, além do profissionalismo, devemos investir tempo.

No contexto midiático atual, em que a maioria dos meios de comunicação social coloca o aspecto comercial em primeiro plano, é cada vez mais difícil reservar um tempo para recuar e refletir sobre o que é necessário para um trabalho de qualidade dentro de uma redação. Para fazer o que fazemos, só a independência e o pessoal nos permitirão. Pessoalmente, sempre optei por permanecer independente, muitas vezes insatisfeito quando colaboro com determinados meios de comunicação. Insatisfeito por não poder contar todas as sutilezas das situações que abordo. 

Diante do perigo percebido no exercício do jornalismo no Brasil, especialmente em áreas de conflito como essa, você acha que a forma de relatar e cobrir esses assuntos mudou nos últimos anos? E você sente que existe um risco maior para jornalistas ao fazer esse tipo de cobertura?

PHILIPPE. A imprensa está em perigo em todo o mundo. A ascensão do populismo na política em quase todo o lado enfraqueceu as instituições democráticas e os meios de comunicação social não são poupados. As redes sociais e o seu algoritmo que cria câmaras de eco também são muito prejudiciais à livre circulação de informação e polarizam os debates.

Não é só no Brasil. Trabalho há 18 anos em áreas de tensão e conflito. Vejo que fazer este trabalho está a tornar-se cada vez mais complicado, muitas vezes por causa das autoridades, mas muitas vezes também por causa de um grande desconhecimento da população sobre o papel do jornalismo.

Antigamente jornalistas e fotojornalistas podiam ser mandados a campo por meses para fazer apenas uma matéria, hoje é preciso ganhar dinheiro, produzir diversas matérias rapidamente, enviar textos e fotos sem dar o passo necessário, tudo isso em poucos dias, ou mesmo algumas semanas. Esta visão comercial do jornalismo é incompatível com uma informação que pretende ser humanista, sensível, na qual as pessoas possam se reconhecer como seres humanos.

De que adianta testemunhar a realidade dos outros se não for para conscientizar, criar empatia e provocar mudanças? Ainda acredito na utopia de que a informação de qualidade contribui para a construção de um mundo melhor e mais justo. Mas as forças a combater são fortes e poderosas.

Considerando a situação de insegurança que vivenciaram, vocês planejam dar continuidade ao documentário? Se sim, quais estratégias adicionais ou medidas de segurança vocês consideram adotar para garantir a proteção de vocês e de sua equipe ao retornar à região? 

PHILIPPE. Claro! Eles não nos impediram, pelo contrário, deram-nos mais força e determinação do que nunca. A violência não nos fará ceder. A onda de denúncias da realidade vivida pelos povos indígenas Guarani no Brasil e em outros lugares é gigantesca, mas temos o coração pesado ao constatar que um homem branco norte-americano deve ser vítima de tal acontecimento para que a mídia abra os olhos sobre estas realidades documentadas. Ainda é cedo para dizer como organizaremos o resto.

Foto: Renaud Philippe e Carol Mira em viagem ao Paraná/Arquivo pessoal

Assinatura Abraji